sábado, 11 de maio de 2013

O negócio da crítica - Raquel Cozer e Fernanda Ezabella

folha de são paulo

Resenhas literárias de amadores na internet atraem milhares de leitores e abrem novo filão para editoras
FERNANDA EZABELLADE LOS ANGELESRAQUEL COZERCOLUNISTA DA FOLHATodo mês, 75 mil pessoas acessam os vídeos em que o paulista Danilo Leonardi, 26, comenta livros. A carioca Ana Grilo, 37, diz ler até 150 títulos por ano para seu blog de resenhas, escrito em inglês. O americano Donald Mitchell, 66, já publicou 4.475 resenhas na Amazon --por parte delas, levantou R$ 70 mil, doados para uma ONG beneficente.
Os três são personagens de um movimento que, nos últimos anos, chamou a atenção de editoras e virou negócio: o de críticas de livros feitas na internet por amadores, que, com linguagem mais simples, atraem milhares de leitores.
Com o aumento na venda de e-books, a expansão da autopublicação e a concorrência ferrenha entre editoras, textos escritos por hobby ou por até R$ 1.000 tornaram-se uma alternativa de divulgação capaz de atingir nichos e multiplicar vendas de livros.
Nos EUA, páginas como o Hollywood Book Reviews e o Pacific Book Review cobram de autores e editoras de R$ 250 a R$ 800 por textos a serem publicados em até 26 sites, incluindo seções de comentários de lojas virtuais.
Editoras estrangeiras passaram, em meados da década passada, a enviar livros para blogueiros resenharem, tal como já faziam com a imprensa. Em 2009, casas como Record e Planeta importaram a ideia, que logo ganhou jeitinho brasileiro: concursos tão disputados quanto vestibulares.
Nesse formato, as editoras criam formulários de inscrições e selecionam blogs após criteriosa avaliação da audiência e da qualidade dos texto. O "pagamento", ressaltam editoras e blogueiros, são apenas os livros a serem avaliados, nunca dinheiro.
No fim do ano passado, 1.007 blogueiros concorreram a cem vagas de parceiros da LeYa. Na Companhia das Letras, foram 779 candidatos para 50 vagas no semestre.
AUTORREGULAMENTAÇÃO
Aqui e no exterior, editoras e autores investem em anúncios ou posts patrocinados em blogs, que com isso chegam a faturar R$ 2.000 por mês.
Mas, no geral, cobrar por resenhas pega mal, e a autorregulamentação dos blogueiros é implacável. O blog americano ChickLitGirls cobrava R$ 200 por uma "boa avaliação" até ser denunciado por uma escritora. O bate-boca subsequente levou à extinção da página, em 2012.
Para se manter com cobranças, só mesmo sendo rigoroso, como a Kirkus, tradicional publicação de resenhas que, em 2004, passou a oferecer serviço de marketing para autores autopublicados.
As críticas no site podem custar mais de R$ 1.000 a autores e editoras interessados, e nem sempre são positivas. Quem contratou o serviço pode ler antes e abortar a missão caso a avaliação seja ruim. O dinheiro não é devolvido.

    Blogueiros chegam a ler 70 livros em um só ano
    Resenhistas ganham com anúncios, mas rejeitam cobrança por avaliações
    No 'hall da fama' de resenhistas da Amazon, o americano Donald Mitchell não avalia livros de que não goste
    DE LOS ANGELESDA COLUNISTA DA FOLHANão é fácil medir o impacto que resenhas da internet têm sobre a venda de livros, mas um exemplo permite entender por que editoras têm investido nesse cenário.
    O juvenil "A Seleção", de Kiera Cass, lançado há sete meses pelo selo Seguinte, da Companhia das Letras, vendeu 16 mil cópias quase sem aparecer na imprensa. Mas foi resenhado por blogs como o Garota It e o Literalmente Falando, que recebem uns 100 mil acessos por mês cada um.
    Enquanto críticas feitas por especialistas em jornais fazem livreiros dar destaque aos títulos nas lojas, blogueiros atraem leitores de gosto similar e alimentam o boca a boca.
    "É bem pessoal. Eles deixam claro que é o canto deles", diz a gerente de marketing da Intrínseca, Heloiza Daou.
    "O discurso não é esse livro é ruim', é não gostei desse livro'", diz Diana Passy, gerente de mídias sociais da Companhia das Letras. "E não basta escrever bem, tem que ser bom blogueiro, interagir com leitores, o que dá trabalho. É isso o que traz audiência."
    Os livros avaliados tendem a diferir daqueles que frequentam cadernos de cultura. Embora blogs como o Posfácio priorizem não ficção e literatura adulta, predominam entre parceiros de editoras os juvenis, femininos e de fantasia.
    "Costumamos dizer esse livro funciona para blog' e esse funciona para a imprensa'", diz Tatiany Leite, 20, analista de comunicação na LeYa e fruto desse cenário --foi trabalhar na editora após se destacar com o blog Vá Ler um Livro.
    A proximidade dos blogs também serve para as editoras conhecerem seu público, com estatísticas. Segundo a Instrínseca, 82% de seus blogueiros são mulheres e 63% moram na região Sudeste.
    Dos 779 que disputaram vagas em janeiro na Companhia das Letras, a maioria tem de 20 a 24 anos (30%) e diz ler de 51 a 70 livros ao ano (22%). Isso num país em que a média anual é de quatro livros incompletos, segundo a pesquisa Retratos da Leitura de 2012.
    INDEPENDÊNCIA
    Um ponto delicado diz respeito à independência de blogueiros que fecham acordos com editoras ou daqueles que fazem resenhas pagas.
    O paulista Danilo Leonardi, 26, que desde 2010 comanda no YouTube o Cabine Literária, com resenhas em vídeo, diz não ficar constrangido de avaliar negativamente obras de editoras de quem é parceiro.
    "A partir do momento em que dediquei meu tempo ao livro, me sinto no direito de falar o que achei. Mas já aconteceu de eu desistir de resenhar um livro que achei ruim de uma editora menor, para evitar prejudicá-la."
    Cobrar por críticas seria antiético, considera ele, que fatura só com vídeos não opinativos --recebe até R$ 700 por entrevistas com autores independentes. A meta de Danilo, servidor da Caixa Econômica Federal, é fazer do Cabine seu ganha-pão.
    A tradutora carioca Ana Grilo, 37, que mora na Inglaterra, assina com uma amiga o blog The Book Smugglers (os contrabandistas de livros), escrito em inglês, e colabora como resenhista para o Kirkus Review, que cobra até R$ 1.000 por resenha.
    Diz que o pagamento não altera resultados. "Temos controle sobre o que escrevemos. Raramente damos nota acima de oito para os livros."
    Já em seu próprio blog, Ana resenha por hobby, sem cobrar. Aceita anúncios, que rendem até R$ 2.200 ao mês.
    Os 110 mil acessos mensais do Book Smugglers a fazem receber, a cada mês, cem livros de autores e editoras, dos quais ela diz ler uns quatro por semana. "Lemos muita coisa ruim, mas também verdadeiros tesouros."
    AMAZON E GOODREADS
    Perder tempo com má literatura é algo que o empresário Donald Mitchell, 66, diz se recusar a fazer. Integrante do "hall da fama" de resenhistas da Amazon, ranking dos usuários que mais avaliaram livros no site, já publicou mais de 4.200 avaliações positivas.
    A proficuidade e a benevolência lhe rendem um assédio de 40 pedidos diários de resenhas. "Digo aos autores que não vou resenhar se não gostar", diz ele, que lê até três livros por semana e os resenha, por gosto, desde 1999.
    Por anos, Mitchell pediu doações para a ONG cristã Habitat for Humanity em troca das resenhas. Chegou a levantar R$ 70 mil. "Nunca toquei no dinheiro, mas a Amazon reclamou e eu parei."
    Ele se refere a uma mudança de regras da loja, em 2012. Ao perceber que o comércio de avaliações tirava a credibilidade desse espaço no site, deletou várias delas. Uma pesquisa da Universidade de Illinois constatara que 80% das resenhas na loja davam aos livros quatro ou cinco estrelas, as duas maiores cotações.
    Outra prova de que a loja valoriza resenhas on-line foi a compra, em março, do GoodReads, rede de indicações de livros com 17 milhões de membros. Suzanne Skyvara, vice-presidente de comunicação do GoodReads, diz que a transparência é o segredo. "Mostramos quanta resenhas cada usuário faz e sua média de cotações."
    Com a compra, por R$ 300 milhões, a Amazon indicou o valor que dá a resenhistas virtuais: cada usuário do GoodReads lhe custou R$ 18 milhões.

      ANÁLISE
      Impressão do 'leitor comum' na internet ajuda editoras a revisarem estratégias
      KELVIN FALCÃO KLEINESPECIAL PARA A FOLHAO comentário sobre literatura na internet cresce a cada dia, acompanhando o movimento de diversificação do mercado editorial.
      Esses comentários compartilham um desejo de dar conta dos livros de forma mais efetiva, atentando para aspectos como a sensação da leitura e a qualidade do entretenimento alcançado.
      É o que se constata não só pela leitura de blogs mas também por sites de venda como a Amazon, que fizeram da veiculação de resenhas de leitores um verdadeiro negócio.
      Se antes os livros entravam apenas em listas de mais vendidos, agora eles podem figurar também entre os mais bem avaliados pelo consumidor --um diferencial considerável num mercado que abriga a cada dia dezenas de novos produtos similares.
      Essa movimentação espontânea chamou a atenção das editoras, que se tornaram ativas no diálogo com os leitores, chegando a estabelecer parcerias formais.
      O comentário sobre literatura na internet, a partir daí, parece não mais seguir a lógica da imprensa clássica, que busca o "especialista", ou o "leitor experiente", para estabelecer um juízo diferenciado e/ou distanciado do senso comum, da "média".
      Pelo contrário, o importante passa a ser o caráter geral da experiência de leitura.
      Para as editoras, interessa mais o "leitor comum", que gera a identificação de outros leitores que, instigados pelos comentários, viram consumidores. Tanto mais forte pode ser o efeito das resenhas de lojas virtuais, onde ocupam o mesmo espaço da venda.
      O cenário ganha complexidade na medida em que as editoras, atentas aos blogs mais populares, passam a receber sugestões e a repensar ou planejar futuras publicações, compras e traduções tendo em vista tais respostas.
      A lógica da parceria vai ficando mais afinada: a escolha do parceiro é guiada pela sua possibilidade de representar e atingir cada vez mais "semelhantes" e, diante da facilidade ou dificuldade de atingir o objetivo (ou seja, vender livros), estratégias editoriais são revisadas.
      O comentário se reforça em sua função de fazer circular a mercadoria, torná-la moeda corrente e garantir sua visibilidade e seu acesso.
      Daí se explica a aparente liberdade de blogs parceiros de editoras para criticar negativamente seus livros. Isso lhes garantiria credibilidade, ainda que possam ser suscitadas questões éticas inerentes à relação de interesses entre resenhistas e editoras.
      Em termos especulativos, pode-se relacionar a perda de espaço da crítica literária nos jornais impressos à intensa pressão desse novo cenário de comentários, mais ao gosto geral. A repercussão disso em termos culturais mais amplos só o tempo mostrará.

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