sábado, 11 de maio de 2013

Poesia e insolência - José Castello


O Globo - 11/05/2013

Trancas, aldravas, cadeados: o real
se fecha à força da linguagem. É
neste vão, entre a palavra que insiste
e o mundo que resiste, que
um poeta escreve seus versos.
“Como uma virgem, a casa se fecha”,
descreve Alexandre Barbosa de Souza, paulista
de 40 anos, que agora reúne seus escritos de
uma jovem vida inteira em “Livro geral” (Companhia
das Letras). Traça, com isso, a linha de
sua maturidade. A linha de uma resistência —
pois se o real não cede, a palavra não cede também.
A poesia, no fim, é um combate. Luta na
qual nem poeta, nem mundo vencem — só a palavra
se ergue.

Acompanho, com ansiedade, o avançar de
Alexandre ao longo de seus cinco livros. Tutor
inútil e tardio, escolto, passo a passo, o nascimento
de uma voz. A poesia é um exercício de
transfiguração: aos poucos, a palavra toma o lugar
da máscara. Há uma “revoada de pombas escuras”
— isto é, há o real que se alvoroça. Entre
elas, “atrasada, a pomba branca”. Sim: a poesia
(pomba branca) sempre chega tarde demais. Em
sua apresentação, um preciso Sérgio Alcides me
dá a palavra que procuro: a poesia é um “interino”.
Um substituto, um sobressalente, algo que
ocupa o lugar do que não pode estar ali. E a
mim, como leitor, resta aceitar essa ausência.
Mais ainda: maravilhar-me com ela.

Sem esmorecer, Alexandre trabalha com o
perdido: com as sobras, os vestígios, os rastros
do real. Descreve sua aventura: “Bem-te-vi,
bem-te-vi./ Te vi mas te perdi./ Bem que procuro/
Onde nunca te vi”. A palavra é só a sombra
de algo que não se alcança. Palavra-iceberg, a
poesia exibe apenas uma pequena ponta daquilo
que carrega. Alexandre, o poeta, sabe que
trabalha “no profundo do céu que desconheço”.
Trabalha — a palavra é dele também — como
um “sonâmbulo”, que se levanta, anda e fala durante
o sono. Também Alexandre escreve em
uma região intermediária, alheia à lógica do
dia. Move-se (as palavras continuam a ser suas)
em um “insustentável firmamento”. Ali, eu (espantado)
o sigo.

Os poemas se alargam sobre o vazio, provocando
alguma angústia, não só em que escreve, mas
em quem os lê. A poesia é uma procura feita com
recursos inapropriados. Nada funciona muito bem
— e, no entanto, o poeta continua a escrever. Diz
Alexandre: “Adormeço pensando:/
Também a lua procura o
céu”. Ela exige lentidão e delicadeza
para aceitar tantos silêncios,
pausas, lacunas. “Silêncio do
que não vi,/ A vida no seu avesso”,
ele diz. Volta a falar da lua —
insiste, sem medo, nesta imagem
banal: “A lua/ Como seu
corpo seco/ Responde a uma
questão antiga”. Ocorre-me que
esta pergunta original, que persiste
não só em seu livro, mas em toda uma existência,
pode ser: “Onde estou?” O poeta não conhece
a resposta, mas segue em sua escrita. É isso
o que intriga: que a poesia se faça “apesar de”.

Imita o aventureiro de que ele mesmo nos fala:
pousa entre o santo (o desconhecido) e o tinteiro
(a escritura). Espremido, instala “seu sábio coração;
de madeira da China”. Ali impõe seu artifício.
Para chegar às palavras, não precisa de muito além
de uma luz branda. Uma lua. Diz: “Basta-me a luz
sem entalhe/ E a lucidez sem portada”. Algo que
não se pode pegar, mas que está ali. Penso então,
assombrado, que Alexandre é jovem demais para
pensamentos tão arcaicos. Costumamos acreditar
que só na velhice extrema se chega, de fato, às origens.
Ele desmente isso. Conhece
o pássaro que em “seu bico de
louça/ tem as curvas que aprisionam/
seu canto”. Trata-se de
um pássaro artificial que, furioso,
sobe e desce escadas. “O que
o faz assim —/ Que ele não voe,
talvez nem saiba —/ É a lembrança
de um céu muito pesado”.
O peso do mundo, contudo,
não impede o poeta de soprar
seu invento. Versos frágeis,
amassados pela noite, ainda assim (ou por isso)
cintilam. O sol os derreteria.

A poesia surge justamente onde o poeta perde
alguma coisa. Nasce de um extravio. Mais uma
vez, a apresentação de Sérgio Alcides é certeira
ao apontar a presença do luto nos versos de Alexandre.
Qual é o objeto da poesia? O que ela deseja
aprisionar? Trata-se de algo que se perde no
momento mesmo em que ele tenta pegar. Portanto:
de uma derrota. Volto aos versos: “Ando
pelas terras,/ Sabendo levar no peito o coração/
Aberto a qualquer falta”. Estou agora nos
poemas escritos entre 1993 e 2003. Alexandre
era só um garoto. Indiferente à cronologia, mais
forte que si mesmo, ele impõe as palavras no
lugar da ausência. Não deve ter sido fácil. Não é
fácil para ninguém, mas é o que todo poeta
busca. Mesmo esbarrando, a maior parte do
tempo, em uma porta trancada.

Deparo com momentos preciosos assim :
“Outro dia sonhei com uma caixa/ Vazia/ Sextavada
por dentro/ Como para conter um diamante/
Mas não havia nada dentro”. É com o vazio
que a poesia, todo o tempo, se defronta. O
diamante — o real — não cabe na palavra. Mesmo
na mais perfeita, mesmo naquela (sextavada)
que ponto a ponto o copia. Não há encaixe.
O ranger produzido pela luta do poeta com as
palavras é, enfim, o poema. Alexandre, em nenhum
momento, se ilude: “O que quer o coração?/
(...)/ Nenhum atinge a perfeição/ E a si
mesmo conhece”. O que mais fazer com um coração
que se fecha, senão doá-lo? “Eis o que fazer:
entrega o coração aos outros/ Sem ostentação:
dominá-lo/ Contraria seu ritmo”. O coração
(o poema), que é imperfeito e que nem
mesmo seu dono domina, existe para a doação.
Nenhum de nós verá o próprio coração e, no
entanto, é ele que nos mantém vivos.

O poeta, por fim, é aquele que não se esquece
“de quando não havia caminho algum”. Trilhando
essa via inexistente — porque trancada — ele
persiste na escrita. Daí os preconceitos que, ainda
hoje, cercam os poetas, tidos como sujeitos
obcecados pelo que não podem ter. Como “lunáticos”.
Talvez por isso a lua retorne, com tanta insistência,
aos versos de Alexandre. Para afirmar
sua insolência. Toda poeta é insolente, todo poeta
é atrevido: quer sempre mais do que tem. Mais
do que pode. Dessa insistência, alguma coisa lhe
é devolvida. A poesia que Alexandre — mesmo
em plena noite — traz tão perto de si.

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