sexta-feira, 14 de junho de 2013

Cheias e vazantes - Marina Silva

folha de são paulo
Cheias e vazantes
Ainda não contabilizamos o prejuízo que a campanha eleitoral permanente causa ao nosso país. Mas já dá para ver a redução drástica das ações estratégicas, dos projetos de prazo mais longo, das reformas básicas e estruturais, enfim, o encolhimento de uma pauta republicana em detrimento de um debate puramente eleitoral que precisa e deve ser feito, mas não antecipadamente.
Política não é só eleição. Quem diz isso pode ser chamado de ingênuo ou mal-intencionado. Mas, mesmo correndo o risco de suscitar essa dúvida nos que têm o democrático direito de descrer da integridade ou maturidade de minhas posições, insisto que não podemos aceitar a redução do debate aos termos da disputa de votos, assim como não podemos medir o desempenho de um governo apenas pelos seus índices de popularidade.
Os prefeitos eleitos no ano passado não completaram seis meses de gestão, as cidades clamam por soluções para seus graves problemas (agora mesmo, em São Paulo, o adiamento de decisões estratégicas sobre o trânsito provoca manifestações que são duramente reprimidas pela polícia) e mal acabamos de sair da temporada de enchentes e desmoronamentos que poderiam ser evitados com planejamento e investimento corretos. Mas todas as atenções se voltam para a antecipação da campanha eleitoral e a movimentação dos possíveis candidatos.
O que ocorre é uma espécie de sequestro da democracia. Vivemos em eterna liminar, jamais chegando ao mérito das causas. O debate de conteúdo, o amadurecimento das decisões, a expansão e o aprofundamento das políticas públicas e, afinal, a própria consolidação da democracia só podem ocorrer nos intervalos. Eles não são o limbo da política, mas justamente o seu momento mais denso. Talvez porque na política, como a comparou Bauman com a oportunidade da cura, o melhor momento para o navegar dos bons projetos não é a cheia, mas a vazante.
Pensei que houvesse um razoável consenso sobre isso, mas vejo que a campanha eleitoral permanente atende a uma ansiedade profundamente enraizada em nossa visão de como funcionam o mundo e a política. E quem se posiciona de outra forma fica parecendo índio em filme de bangue-bangue, armado de arco e flecha, tentando atravessar um cerrado tiroteio entre mocinhos e bandidos (podendo ser confundido com um ou outro, quase nunca considerando outra forma de ser, pensar e agir).
Devemos, porém, insistir em mudar a pauta. Qualquer vitória conquistada na prática, com consequências efetivas na vida, vale mais do que índices em pesquisas. Ao menos quando a alma não é pequena, como dizia Fernando Pessoa. Que sua poesia eterna nos inunde e inspire em nossas passageiras vazantes.

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