segunda-feira, 24 de junho de 2013

Cinema fantástico - Silas Martí

folha de são paulo
Cinema fantástico
Diretor Michel Gondry adapta 'A Espuma dos Dias', clássico psicodélico deBoris Vian reeditado agora no Brasil, criando uma Paris retrô e alucinógena
SILAS MARTÍENVIADO ESPECIAL A PARIS
Na vida real e no filme, escavadeiras cavucam o coração de Paris, o rastro deixado pela demolição de uma galeria de lojas que vai virar praça. Enquanto isso, uma flor cresce no pulmão da frágil mocinha da história --seu destino é datilografado ao vivo em máquinas de escrever que deslizam sobre trilhos.
É nesse universo "retrofuturista", mistura de imagens atuais da capital francesa com aparatos mecânicos insuspeitos e altas doses de fantasia, que o diretor francês Michel Gondry decidiu ambientar sua adaptação de "A Espuma dos Dias", um livro clássico, para o cinema.
Escrito em 1946 por Boris Vian, "A Espuma dos Dias" conquistou um lugar no coração dos adolescentes franceses análogo a "O Apanhador no Campo de Centeio", de J.D. Salinger, entre os jovens norte-americanos. É a história de amor impossível do dândi Colin e sua amada, cândida e bela Chloé.
Impossível porque, logo depois que se casa, numa cerimônia que tem até uma limusine transparente e outros requintes, a mocinha, vivida no filme por Audrey Tautou, a eterna Amélie Poulain, descobre que um nenúfar cresce dentro de seu pulmão e deve ser extirpado para que ela não sufoque até morrer.
Romain Durys, na pele de Colin, torra toda a herança que garantia seu estilo de vida bon vivant com os médicos que tentam salvar a mulher da morte certa. E o resto está na história que estreia nesta sexta, nos cinemas do país, e chega às livrarias, reeditada em português pela Cosac Naify, nesta semana.
Não faltam no livro excessos descritivos para alimentar os exageros visuais de Gondry. Tanto que o diretor de "Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças" e de alguns dos clipes mais malucos de Björk considera esse filme uma espécie de resumo de toda a sua obra visual.
"Todo mundo que conheço já leu esse livro, e os franceses amam essa história", diz Gondry, em entrevista à Folha, num hotel de Paris. "Senti a pressão para não decepcionar o público, mas tentei me ater às impressões que ficaram da minha primeira leitura desse romance."
Talvez isso explique o turbilhão cronológico da história. "De fato, é um filme retrofuturista'", diz o diretor. "Queria criar um mundo igual ao de hoje, mas pensando que as coisas seguiram outra direção a partir dos anos 1940, um mundo paralelo."
Gondry e Vian, aliás, também têm seus paralelos.
Tanto um quanto o outro fizeram obras marcadas pelo trânsito entre a cultura europeia, de berço, e os Estados Unidos. Enquanto Gondry se rendeu a Hollywood, Vian, que morreu em 1959 e só não viajou para a América por problemas de saúde, era trompetista de jazz e fez dessa música a trilha sonora de sua escrita, quase um mantra libertário no pós-guerra.
"Essa era a música da liberdade", diz Gondry. "Mas sou muito mais crítico à cultura americana do que ele. Meu tributo a esse sonho dele de ir para a América aparece no filme no vagão de trem que eu usei para filmar a sala de jantar de Colin. É como uma lanchonete americana."
Mas fora do vagão de trem e da ambientação psicodélica dos bailes de jazz da época, Gondry caçou locações em Paris para dar um toque surreal à narrativa de Vian.
Uma delas foi a sede do Partido Comunista, projeto de Oscar Niemeyer na capital francesa, que surge no filme como a oficina em que operários escrevem o romance em linha de montagem, cenário que não está no livro, mas faz homenagem ao processo de escrita do original.
"Esse lugar tem mesmo uma pegada de ficção científica", diz Gondry. "Niemeyer foi um grande arquiteto, melhor que Le Corbusier, e tem algo delicado nesse projeto."
CONTO MODERNO
Nada delicado é o sofrimento dos personagens da trama, cada um sucumbindo a um vício ou a pressões do trabalho. Vian, em tradução visual de Gondry, parece comentar um tema bastante atual --a precarização da mão de obra num momento de colapso político e financeiro.
Isso fica explícito numa das cenas mais fortes do filme, em que Colin, já falido, vai trabalhar como operário que empresta o calor do corpo como adubo para uma plantação de metralhadoras --ele fica nu, sobre um monte de terra, para nutrir armas que brotam como flores.
"Nossa época é mais deprimente que a do livro", diz Audrey Tautou à Folha. "Há ali uma metáfora sobre o mundo do trabalho e da cadeia de produção, mas a fantasia do filme distancia isso tudo da realidade e cria uma história atemporal. É um esboço sobre a sociedade, um conto moderno acima de tudo."
cRÍTICA
Abundância de imagens cria problema para o espectador
CÁSSIO STARLING CARLOSCRÍTICO DA FOLHAQuando Björk apareceu, nos idos de 1993, em uma floresta cercada de bichos de pelúcia e esvoaçantes animações de papel no vídeo de "Human Behaviour", logo se descobriu que aquela extravagância anunciava mais que um talentoso diretor de clipes.
Em seu sexto longa em pouco mais de uma década, Michel Gondry reafirma a singularidade de seu universo audiovisual e uma assinatura que vai além da habilidade de produzir bricabraques.
O desafio em transpor "A Espuma dos Dias" para o cinema está na abundância das imagens, responsáveis, em grande parte, pelo fascínio do romance de Boris Vian.
O filme traduz com tantos detalhes e inventividade o imaginário tresloucado de Vian que acaba criando um problema básico para o espectador: é difícil se situar sensorialmente em meio ao volume de estímulos e ainda prestar atenção na narrativa.
O efeito desse excesso, em mais de um momento, é que o filme se confunde com um videoclipe de longa duração.
Outro obstáculo decorre, paradoxalmente, da proximidade do cinema de Gondry com a delirante escritura de Vian. Do mesmo modo que aconteceu com David Cronenberg ao transpor o "Almoço Nu", de William Burroughs, o filme sofre com uma falta de distância ou de diferença, portanto, de autonomia em relação ao cultuado original.
Nos dois casos, é como se os cineastas expusessem demais seu universo tão próprio à radiação da matriz, a ponto de quase perderem a capacidade de metamorfosear, vampirizar o outro. Apesar desses limites, é difícil não se emocionar com o modo como o filme expressa o tema usado e abusado da perda.
E quando Gondry consegue se despojar da mania de amontoar, quando acredita no desbotamento e nos convida a sentir a melancolia visualmente, "A Espuma dos Dias" vira, como "Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças", quase obra-prima.
    Obra que inspirou filme é 'rebarba da noite'
    DO ENVIADO A PARIS
    Boris Vian, que morreu aos 39, em 1959, fazia mais barulho como trompetista de jazz na Rive Gauche do que como escritor quando lançou "A Espuma dos Dias", história de amor louco que vinha como celebração do fim da guerra.
    "Não era a cultura do texto difícil do Jean-Paul Sartre, mas a rebarba das caves e da noite parisiense", diz a professora da PUC de São Paulo, Leda Tenório da Motta. "Esse livro causou certo frisson."
    Mas não passou de uma moda. Na opinião de Motta, Vian não conseguiu deixar o "subúrbio do existencialismo", embora talvez seja lá que ele tenha querido ficar.
    "É uma linguagem muito alegre com temas muito, muito tristes", analisa o crítico e escritor Silviano Santiago. "Está mais próxima do boogie-woogie, ou do blues, de grande tristeza, mas com uma beleza musical enorme."
    Vian, de fato, parece ritmar sua escrita cheia de excessos de acordo com o improviso do jazz. E ironiza figuras célebres das letras francesas, como Sartre, na trama secundária do amigo do protagonista Colin, viciado nos livros de um tal Jean-Sol Partre.
    É um livro que sobreviveu, e ganhou enorme simpatia, por seus tipos "caricatos", "freaks" de boa índole e uma história de amor clássica.

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