sexta-feira, 5 de julho de 2013

Nos porões da loucura - Carlos Herculano Lopes‏


Estado de Minas: 05/07/2013 

Nos perdidos dias da infância, quando ainda vivia em Coluna, cidade que hoje os teóricos definiriam como “Brasil profundo”, a simples menção ao hospício de Barbacena era suficiente para deixar todos com a orelha em pé. Na farmácia do meu pai, para onde convergiam as tragédias locais, pois na cidade não existia hospital, ouvi um boato de que o Helvécio, um conhecido nosso, tinha ficado louco. “Vai ser levado para Barbacena, já estão providenciando o carro”, alguém disse como verdade definitiva, sem chance de ser revogada. Quando cheguei em casa e perguntei à minha mãe, que confirmou a notícia, fiquei apavorado, como deve ter ficado aquele homem quando o prenderam.

Tempos mais tarde, em 1979, quando antes mesmo de sair da faculdade comecei a trabalhar no Estado de Minas, lembro-me de que o nosso colega Hiram Firmino, então jovem repórter, publicou uma série antológica , “Os porões da loucura”, na qual denunciava, sem concessões, as condições desumanas em que viviam milhares de brasileiros confinados no Hospital Colônia de Barbacena. Era como se estivessem em campos de concentração nazistas. As fotos, que causaram grande impacto, inclusive em mim, foram feitas por Jane Faria, que também trabalhava no jornal.

Naquele mesmo ano, o jovem cineasta Helvécio Ratton, não sei se inspirado nas matérias de Hiram, que lhe valeram o cobiçado Prêmio Esso de Jornalismo, fez um documentário sobre aquela casa de horrores. Em nome da razão foi filmado no interior da colônia, também causando grande impacto.

 Tenho o privilégio de ser amigo tanto de Hiram Firmino quanto de Helvécio Ratton e do psiquiatra e escritor Ronaldo Simões Coelho, que também teve peito de denunciar as atrocidades cometidas em Barbacena. Por conta disso, ele perdeu o emprego de chefe do Serviço de Psiquiatria do Estado de Minas Gerais. As notícias correram e nomes famosos, como o francês Michel Foucault e o psiquiatra italiano Franco Basaglia, ajudaram nas denúncias. “Em nenhum lugar do mundo presenciei uma tragédia como essa”, disse Basaglia, escandalizado, quando esteve por lá.

Se estou contando isso é para dizer que estes dias, entre fascinado e estarrecido, li Holocausto brasileiro, genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil (Geração Editorial), da jornalista Daniela Arbex. Certa vez, em Barbacena, levado por Sheila Doumith e Waldir Damasceno, fiquei conhecendo o Museu da Loucura, onde dá para ter uma ideia, já distanciada pelo tempo, do que ocorria com os internos. Atualmente, informa Daniela Arbex, 170 pacientes continuam internados como crônicos no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena (CHPB), novo nome do antigo Hospital Colônia.

 Repetir que foi um massacre, uma vergonha para o Brasil ter permitido que de 1930 a 1980 tanta barbaridade tenha ocorrido às nossas caras na bucólica Barbacena, ironicamente conhecida como a Cidade das Rosas, seria chover no molhado. Só lendo o livro para tirar as próprias conclusões.

Quanto ao Helvécio, aquele conterrâneo meu – diferentemente de milhares de compatriotas, que, sem nome nem dignidade, pois tudo lhes foi tirado, perderam suas vidas jogados naquele inferno –, ele deu a sorte de voltar para casa, em Coluna, onde se casou, teve filhos e criou a família com seu trabalho. “Morreu em paz, cercado pelos seus”, minha mãe me disse dia desses, quando fui visitá-la na velha casa da Floresta.


PS: O livro Holocausto brasileiro será lançado amanhã, a partir das 11h, no Café com Letras, Rua Antônio de Albuquerque, 781, na Savassi. Informações: (31) 3225-9977.

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