terça-feira, 13 de agosto de 2013

MARIA ESTHER MACIEL » O memorioso‏

O mapa do mundo estava em sua cabeça: lembrava-se de todas as cidades que visitara


Estado de Minas: 13/08/2013 


Sempre fui meio desmemoriada. Costumo anotar quase tudo num caderninho que carrego na bolsa, de forma a burlar o esquecimento: desde frases ou ideias que me ocorrem de repente, até listas de tarefas importantes dos próximos dias e coisas imediatas para resolver. Às vezes, ainda costumo escrever bilhetes para mim mesma e deixá-los sobre a escrivaninha, preocupada com os prazos e compromissos. Mesmo porque, gosto de ser pontual.

É justamente por usar, o tempo todo, artifícios para manter acesa a memória das coisas (ou as coisas da memória) que admiro as pessoas memoriosas. Não à toa, um dos personagens literários que mais me impressionam é Irineu Funes, de um conto de Jorge Luis Borges. Para quem não se lembra, o personagem é um rapaz que, após sofrer um acidente, perde a capacidade de esquecer. Desde então, não consegue mais se desvencilhar das lembranças de tudo o que viveu, leu, viu, ouviu, sonhou e imaginou ao longo do tempo, passando a viver mentalmente em meio ao acúmulo de suas próprias recordações. Ele chega a dizer: “Mais recordações tenho eu sozinho que as que tiveram todos os homens desde que o mundo é mundo”. E, de fato, ele se lembra dos mínimos detalhes de tudo, como conta Borges de forma magistral.


Não foram poucas as vezes que chamei José Olympio – meu companheiro, que partiu no mês passado – de “o meu Funes”, por causa de sua memória prodigiosa. Quem o conheceu de perto sabe do que estou falando. Ele se lembrava de praticamente tudo, com minúcias. Nomes, sobrenomes, datas, endereços completos, números de telefones, títulos de livros, filmes e obras de arte, placas de carros, detalhes de acontecimentos do passado e do presente, tudo isso ele mantinha vivo na memória. O mapa do mundo estava em sua cabeça: lembrava-se de todas as cidades que visitara, com seus nomes de ruas percorridas, bairros e arredores. E também registrava dados sobre lugares a que nunca tinha ido, pois adorava os mapas e os estudava com fervor.


Lembro-me de uma vez que fui sozinha a Tóquio e me perdi num dos bairros, sem conseguir identificar os nomes dos lugares, escritos em japonês. Mas como sempre acontecia, José Olympio tinha se preocupado em estudar o mapa e os guias da cidade com antecedência, só pelo prazer de se imaginar lá também. Assim, peguei o telefone e liguei para ele, contando mais ou menos onde estava e perguntando sobre o melhor caminho de volta. Tão logo situou o lugar, ele me passou as coordenadas, sugerindo-me, ainda, um bom restaurante lá perto. Isso, sem nunca ter ido nem sequer uma vez ao Japão.


Não bastasse a memória fabulosa, José Olympio ainda era conhecido como um homem “enciclopédico”. Sabia tudo sobre tudo. Meu filho Ricardo costumava chamá-lo de “minha enciclopédia particular” nos momentos em que precisava de referências para alguma pesquisa. Dispensava até mesmo o Google e a Wikipédia, pois José Olympio tinha as informações na ponta da língua e ainda as passava com detalhes interessantes e divertidos. Aliás, o humor era outra de suas qualidades. Mesmo sendo um homem sério, ele tinha o dom de fazer rir.


É por essas e várias outras coisas que ele vai ficar na memória dos que o conheceram. Até mesmo na dos desmemoriados.

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