sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Michel Laub

folha de são paulo
Selinho nas trevas
Soa quase frívolo Bergoglio falar de como uma criança sofreria sem referência masculina ou feminina
Uma coincidência separou em poucos meses, no Brasil, a visita do papa e o lançamento de "Longe da Árvore", de Andrew Solomon, que sai em setembro pela Companhia das Letras.
O livro fala de indivíduos e famílias de indivíduos com autismo, esquizofrenia, deficiência múltipla, síndrome de Down, além de prodígios, transgêneros, surdos, anões, criminosos, crianças geradas por estupro.
Trata-se de um ensaio/reportagem de impacto comparável a "O Demônio do Meio-Dia" (Objetiva), a obra-prima de Solomon sobre depressão. Num ponto, ao menos, ambos convergem: o autor tenta entender sua condição pessoal --como deprimido grave, no primeiro caso, e como gay e pai, no segundo-- investigando o conceito de identidade. Ou de algo que com ela se mistura em termos históricos, políticos e científicos: a doença.
Talvez seja injusto comparar as mais de mil páginas de "Longe da Árvore", seu rigor obsessivo na busca por depoimentos e bases teóricas e empíricas, com o mais sucinto e digestivo "Sobre o Céu e a Terra" (Paralela), reunião de conversas entre o então arcebispo de Buenos Aires Jorge Bergoglio e o rabino Abraham Skorka.
De qualquer modo, vamos lá. Nas palavras de Solomon, seu livro fala de lares onde "tudo parece ter dado errado". Desse possível pior cenário, sem cair no relativismo ingênuo ou no apelo das histórias de superação, o autor descreve a luta para entender e aceitar as "identidades horizontais" --casos de crianças radicalmente diversas dos pais.
Já "Sobre o Céu e a Terra" trata com mais severidade diferenças menos acentuadas, como a de filhos adotados/criados por pessoas do mesmo sexo. Depois de ler os relatos dolorosos de Solomon, soa quase frívolo Bergoglio falar de como uma criança sofreria por não ter --numa casa onde foi querida desde o início-- uma referência masculina ou feminina. A pergunta que surge, e ainda na lógica do pior cenário, é óbvia: sofreria mais do que se fosse criada num orfanato, ou por pais violentos/omissos?
A resposta do futuro papa não sai do campo dos princípios, como é próprio da igreja. A existência de um problema não justificaria o endosso à perpetuação de outro. Como a solução de nenhum deles está no horizonte próximo, vem à cabeça a réplica também óbvia: se agarrar a um ideal abstrato não é uma forma de lavar as mãos diante de uma situação urgente e concreta?
À primeira vista, "Sobre o Céu e a Terra" não discrimina a orientação sexual de ninguém. A frase célebre do papa no Brasil --"quem sou eu para julgar?"-- é reproduzida com outras palavras no livro. Mas aí leio um trecho em que Skorka discorre sobre a incompletude do amor "praticado por iguais", que desperdiçaria a riqueza de "descobrir o outro".
É um argumento complicado, porque atribui valor menor a uma conduta que decorre de um modo de ser, com ele podendo se fundir. Uma identidade, portanto, que nada têm de imoral ou moral. Também é um argumento simplório: então dois indivíduos se conhecem por inteiro, e não sobra riqueza na relação daí nascida, apenas porque ambos são XX ou XY?
O espanto diminui quando lembro que estamos tratando de religião. Nela, por mais que se evoquem ciência e cultura, como fazem o papa e o rabino com inteligência, há um momento em que se esbarra no dogma. Em que se naturaliza como verdade ancestral revelada o que, como todo fenômeno humano, tem muito de discutível construção social.
Num Estado laico, cada um faz o que quer dentro dos limites da lei civil. É direito da religião apontar o caminho que acha correto. Cabe apenas registrar que não só essa lei, mas a forma como as pessoas vivem no cotidiano, com menos ou mais tolerância e violência, pode ser efeito do que parece apenas debate doutrinário.
Bergoglio e Skorka dizem que cada um é livre para exercer sua natureza no "recato e intimidade", mas que equiparar o casamento gay ao heterossexual, em todas as esferas legais e simbólicas, seria um "retrocesso antropológico". Como essa matriz de pensamento, determinada por líderes espirituais e políticos que assim se apresentam, é interpretada por quem discute no bar o selinho que o jogador Sheik deu num amigo?
"Longe da Árvore" é uma defesa generosa da diversidade humana, que aponta para a luz possível até em meio à devastação. "Sob o Céu e a Terra" tenta fazer o mesmo em alguns trechos, mas em outros flerta --ou vai além disso-- com as trevas.

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