sábado, 21 de setembro de 2013

José Miguel Wisnik

Direitos

Não sou um partidário das depredações, nem quero cobri-las de um véu de inocência

A historiadora Dulce Pandolfi, professora do Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas, foi demitida sumariamente no dia 6 de setembro, em pleno andamento do semestre, cursos e atividades de orientação. A mobilização de alunos, juntamente com uma petição pública com amplo apoio, reverteu a decisão da instituição, reconduzindo-a ao cargo. Não vale a pena entrar aqui nos meandros político-burocráticos que levaram ao erro, em boa hora corrigido. Importa lembrar mais uma vez que Dulce Pandolfi fez um depoimento à Comissão da Verdade, no Rio de Janeiro, sobre a tortura de que foi vítima durante a ditadura, que está entre os mais luminosos documentos que temos no Brasil sobre o funcionamento do mundo das sombras. E, embora tenha sido noticiado o seu depoimento, acho lamentável que não tenha sido publicado na íntegra nos maiores jornais do país.
A Comissão Especial de Investigação de Atos de Vandalismo em Manifestações Públicas, criada pelo governo do estado, no Rio, autorizou mandados de busca e apreensão nas casas de administradores da página do Black Bloc no Facebook. Essas ações resultaram na prisão de jovens estudantes indiciados por formação de quadrilha armada, incitação ao crime, corrupção de menores e pedofilia. Leio que, segundo a OAB, os poderes de que a Comissão foi investida só estariam constitucionalmente respaldados se partissem da esfera federal, e não da esfera estadual. O coletivo formado para a defesa dos direitos fundamentais, por sua vez, mobilizado perante a arbitrariedade dos atos e dos fatos, aponta a precariedade das provas produzidas para a acusação: a “quadrilha” só se encontrou basicamente pela internet, exercendo o direito legítimo de manifestação de ideias; a prova mais substancial de que é “armada” estaria na localização de um canivete na casa de um dos jovens presos; a “corrupção de menores” se baseia no fato de que as idades oscilam entre um pouco mais e um pouco menos de 18 anos, razão pela qual os maiores são apontados como corruptores dos menores; e a “pedofilia” se baseia na presença de vídeos pornográficos na casa de um, sem ser possível caracterizar a participação de menores nesses vídeos.
A cadeia indutiva que trabalha no afã da produção de evidências acaba por arrolar como peças incriminatórias o livro clássico de Henry David Thoreau, “Desobediência civil” (com cujas ideias costumam ser identificados Gandhi, Martin Luther King e o Solidariedade polonês), junto com o volume acadêmico “Anarquismo — A liberdade prática”, da “Revista de História da Biblioteca Nacional”. É um absurdo que se soma ao outro, que faz com que os supostos membros de uma “quadrilha armada” não possam, por essa mesma caracterização, ter suas prisões relaxadas.
Não sou um partidário das depredações, nem quero cobri-las de um véu de inocência. Elas fazem parte da complexidade do teatro público que se instaurou no Brasil, do qual os Black Blocs são atores, e cuja negatividade teve ou tem o papel, entre outros, de dificultar a domesticação das manifestações pela mídia. Já se falou do fato de que a polícia teve interesse em insuflá-los, em certos momentos, enquanto reprimia manifestantes pacíficos. Francisco Bosco mostrou, aqui, que no 7 de Setembro o batalhão de fotógrafos já contracenava visivelmente com os Black Blocs, num mecanismo conhecido pelo qual a cobertura dos fatos precisava e dependia, antes de mais nada, deles, como seus personagens, e eles já se viam capturados, em alguma medida, pela impossibilidade de fugir ao fato de estarem fazendo cena para as câmeras.
Em suma, não acho que ações de grupos anárquicos e anticapitalistas estejam efetivamente ameaçando o capitalismo, ao arranharem evidentemente seus símbolos — carros e bancos. (Discordo também de minha amiga Marilena Chauí de que ajam como fascistas). Eles estão injetando nas manifestações, que são ações simbólicas, um componente de real, de atrito direto, que lhes dá outra espessura. A caracterização genérica de “vândalos” visa a esquematizar a situação, fomentando uma suposta e clara divisão imaginária entre o bem e o mal. Mas as máscaras também são reais, são simbólicas e são imaginárias, têm múltiplos sentidos e não podem ser objeto de criminalização. Foi o que Caetano Veloso sinalizou, ao assumir o teatro público no sentido de fazê-lo avançar para a simbolização, e não para a violência.
Voltando: a prisão de jovens a partir da autorização de uma comissão de legitimidade duvidosa, incriminando-os com evidências forçadas e ridículas, não fossem graves, é mau teatro jurídico, busca produzir, na dificuldade de equacionar os reais problemas, uma cena imaginária de eleição de culpados, e atenta contra direitos fundamentais.


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