sábado, 18 de janeiro de 2014

Um cara e tanto [ Salinger] - João Paulo

Um cara e tanto
 
Biografia e documentário cinematográfico sobre Salinger, autor de O apanhador no campo de centeio, mergulham em um dos mais persistentes mitos literários do século 20, com revelações bombásticas


João Paulo
Estado de Minas: 18/01/2014


A biografia de Shields e Salerno vai matar a curiosidade de muita gente sobre a figura de Salinger. Sempre avesso a fotografias, ele aparece em dezenas de imagens, elegante e charmoso (Antony Di Gesu/ Intríseca/Reprodução)
A biografia de Shields e Salerno vai matar a curiosidade de muita gente sobre a figura de Salinger. Sempre avesso a fotografias, ele aparece em dezenas de imagens, elegante e charmoso

J. D. Salinger não tem sossego. O escritor americano, nascido em 1919, fez de tudo para se fingir de morto em vida, até ser enterrado de vez em 2010, aos 91 anos. Mas não lhe deram descanso. Chega hoje às livrarias brasileiras mais uma biografia do autor de O apanhador no campo de centeio, um dos romances mais lidos do século 20. O livro Salinger, de David Shields e Shane Salerno (Editora Intrínseca), faz par com o documentário de mesmo nome, dirigido por Salerno (roteirista de Alien versus Predador e Armageddon), que estreia no Brasil em 14 de fevereiro. Está aberta a temporada Salinger.

A biografia chega embalada com promessas de revelações pessoais e literárias. Além disso, se apresenta como a mais ampla pesquisa sobre o autor, com depoimentos e entrevistas de mais de 200 pessoas, sem contar a recuperação cuidadosa da bibliografia sobre o criador da família Glass. Em outras palavras, Salinger seria uma espécie de obra definitiva, capaz de esclarecer os enigmas em torno de um dos maiores mitos literários do século 20. Sem querer desanimar o leitor, o livro passa longe disso.

A existência e a criação artística de Salinger são dignas do mito. O autor, depois de se firmar como contista de revistas de prestígio, sobretudo a The New Yorker, lança em 1951 um romance que marcaria época, O apanhador no campo de centeio. A ele se seguiriam apenas mais três livros, de contos e novelas, tendo como personagens integrantes da família Glass: Nove estórias; Para cima com a viga moçada e Seymour, uma introdução; e Franny e Zooey. Em 1965, Salinger publica seu último conto, “Hapworth 16, 1924”, retira-se para uma fazenda em Cornish, não faz mais aparições públicas nem dá entrevistas ou se deixa fotografar de livre e espontânea vontade – é claro que os paparazzi não perdoaram.

ara dar ainda mais molho ao mistério, as obras de Salinger exibem um misto de coloquialismo e senso de mistério, cotidiano e metafísica, infância intocada e maturidade, dissecação do mundo material e recolhimento no espírito. Como seu adolescente Holden Caulfield, que não encontra seu lugar no mundo, os leitores de Salinger parecem ter descoberto um parceiro profundo para seu desajustamento. Ele recusa o mundo material para afirmar um universo diferente, melhor e menos conspurcado. Sua sabedoria, nutrida em filosofia oriental e na mística do Ocidente, se revela nas coisas mais singelas. Além disso, com uma voz literária única, fica sempre a um passo do virtuosismo, que ele sabiamente desmancha com uma sinceridade tocante, embora vicária.

Shields e Salerno não chegam ao campo de centeio sem predecessores. Outros autores, melhor dotados que eles em matéria de literatura e historiografia, já haviam se debruçado sobre a vida de Salinger, entre eles Peter Alexander, Ian Hamilton e, mais recentemente, Kenneth Slawenski. O que o novo projeto traz, infelizmente, é certo senso mecanicista de ligar vida e obra. Sem sutileza ou respeito às inconstâncias do sujeito em sua vida psíquica, os biógrafos parecem ler a obra de Salinger pela chave de sua vida. A causa B. Por isso, em vez da síntese trabalhada, que é o que se espera de uma boa biografia, eles se esmeram na coleção de informações e no mero jogo da livre associação.

O método dos autores é o da justaposição. Assim, depois de definidos os parâmetros de julgamento, eles dividem a obra em capítulos que nada mais são que a colagem dos depoimentos dos tais 200 entrevistados, intercalados com reflexões e transcrições de outras obras sobre Salinger, num amplo tabuleiro autorizado de citações justificadoras e, na maioria das vezes, descontextualizadas. Em poucas palavras, o trabalho fica em grande parte para o leitor, que precisa ainda se familiarizar com as dezenas de vozes, inclusive hierarquizar sua importância para dar a elas o peso devido.

Um dos grandes atrativos do livro são as fotografias, cerca de 180, com imagens inéditas de Salinger, de sua família, namoradas e companheiras, além de personagens e episódios importantes em sua vida. Como o escritor foi sempre excessivamente cioso de sua privacidade, as imagens, além de dar mais naturalidade ao homem Salinger, revelam um tipo charmoso, sempre cuidadoso na forma de se vestir, em poses ensaiadas e com o eterno cigarro entre os dedos. Quase um galã bonitão, um dos tipos que ele mais escarnece em suas histórias.

GUERRA E RELIGIÃO A tese dos autores é que a Segunda Guerra destruiu o homem Salinger e deu origem ao artista. Em seguida, a religião vedanta salvou o homem para dar cabo do artista. Entre os dois polos, a guerra e a religião, a vida e obra do escritor foi sendo tecida em meio à solidão, sofrimento e poucos momentos de redenção. A primeira parte da biografia põe Salinger no teatro da guerra, onde servia como agente de contrainformação, em meio a muitas mortes e destruição. Sem deixar nunca de escrever, o jovem e sofisticado Jerome David acaba tendo um colapso nervoso grave, é internado e volta outro para seu país.

A partir daí, os biógrafos seguem a vida do homem e do artista, sempre com o senso determinista. Assim, entra em cena a paixão por Oona O’Neill, a linda jovem, filha do dramaturgo Eugene O’Neill, que deixará Salinger para se casar com Charles Chaplin, muito mais velho que ela, com quem teria oito filhos e viveria até a morte do marido. Salinger, para seus biógrafos, teria adquirido uma fixação em moças jovens, que o atrairiam e em seguida ele se apressaria em abandonar, para se antecipar à rejeição que poderia vir a sofrer. As sucessivas paixões por adolescentes teriam sido todas elas heranças do trauma causado por Oona.

Sempre em busca de certo sensacionalismo que brote da vida – Shields e Salerno certamente não são analistas literários muito refinados – os autores anunciam então a raiz biológica do comportamento evasivo do escritor: uma anomalia anatômica. De acordo com os autores (a partir de depoimentos confirmados por duas mulheres que conheceram o escritor intimamente), Salinger tinha apenas um testículo. O exagero dos autores é dar a um fato pouco traumático o condão de explicar o comportamento esquisitão de Salinger, que teria se retirado do mundo para evitar que as pessoas soubessem que um de seus testículos não teria descido.

Os autores tinham em mãos um personagem e tanto, complexo, às vezes genial, identificado com milhões de jovens (só O apanhador no campo de centeio vendeu 65 milhões de exemplares e segue com quase 1 milhão por ano até nossos dias), atravessando um período de grandes transformações na sociedade americana e de transformação na arte literária. Sem esquecer que ele colaborou para todas essas mudanças, na cultura e no comportamento. Para completar, ao se isolar por 55 anos, Salinger criou um modelo anticelebridade que destoa do cenário contemporâneo, que o torna ainda mais atraente.


Salinger
De David Shields e Shane Salerno
Editora Intrínseca, 704 páginas, R$ 49,90




Entre Holden e Seymour Biografia de Shields e Salerno anuncia a publicação de cinco obras inéditas de Salinger até 2020. O apanhador... ainda atrai a atenção de adolescentes e pacifica pais em busca de diálogo com os filhos


João Paulo




Oona O'Neill, um amor da mocidade  (Bettmann/Corbis/Reproduçao)
Oona O'Neill, um amor da mocidade

Shields e Salerno escreveram Salinger e produziram o documentário de mesmo nome para responder a três perguntas: por que ele deixou de publicar; por que se retirou do mundo; o que escreveu em seu bunker defeso em Cornish, enquanto via naufragrar seus relacionamentos pessoais, familiares e afetivos?. São boas questões, mas não são certamente as mais importantes. Olhar de sobrevoo, fica faltando a consideração às obras e ideias de Salinger. Na verdade, fica faltando Salinger. Depois de 700 páginas, David Shields e Shane Salerno sintetizam suas conclusões em 10 “problemas”.

O primeiro é a falta do testículo, que teria afastado o escritor de seus semelhantes, além de diminuir sua autoestima; o segundo, a perda de Oona para um homem mais velho e mais famoso; o terceiro, o trauma da guerra (“a guerra o criou”); o quarto, a conversão ao vedanta e o afastamento do mundo material; o quinto, o refúgio em Cornish, uma fuga da vida social e do secularismo nova-iorquino; o sexto, os casamentos; o sétimo, as crianças, já que Salinger prezava mais seus filhos ficcionais (Holden e a família Glass) do que os de carne e osso.

Na lista de Shields e Salermo, o oitavo problema foram as garotas, com a fixação do escritor por jovens adolescentes à beira da entrada no terreno da sexualidade, num misto de pureza e desejo; em nono vinha o isolamento, com a contraditória inclinação para lembrar o público o tempo todo que ele era um recluso; e, por fim, em décimo lugar, o desapego, a tentativa de se livrar de suas feridas reais e imaginárias por meio da arte – as sucessivas tentativa de cura o aniquilaram como sujeito, embora em alguns momentos tenham ajudado a constituir o artista.

Mas a grande revelação de Salinger está no último capítulo, “Segredos”. Os autores garantem que o escritor nunca deixou de trabalhar (o que já se sabia) e que organizava cuidadosamente sua produção, tendo deixado pelo menos cinco livros completos, que serão publicados entre 2015 e 2020. A grande notícia, de acordo com os biógrafos, foi comprovada por fontes seguras, embora o filho e responsável pelo espólio, Matthew, não confirme. O próprio Salinger já havia deixado nas entrelinhas (e em orelhas de seus livros) que vinha trabalhando em novas histórias. O que os biógrafos cravam, entretanto, é não apenas a quantidade exata de originais, como também o tema de cada um deles.

O primeiro livro a ser publicado postumamente no ano que vem reunirá as histórias da família Glass; em seguida, chegará ao leitor um romance sobre a primeira mulher, Sylvia Welter (acusada por Shields e Salerno de ser informante da Gestapo, que manteria um romance com o sargento X do conto “Para Esmé, com amor e sordidez”). Na sequência, uma novela em forma de diário de um agente da contrainformação, sobre a Segunda Guerra Mundial; um manual de filosofia vendanta por meio de histórias edificantes; e, finalmente, mais Holden Caulfield. O eterno herói de O apanhador no campo de centeio vai ressurgir em um conto de 12 páginas, de 1942, totalmente reformulado, ao lado de seis novas histórias que desenham a genealogia da família Caufield.

Sobre o filme Salinger, o trailler disponível no YouTube deixa entrever uma pegada sensacionalista, com depoimentos de atores de Hollywood falando da importância de O apanhador… em suas vidas (uma bobagem recorrente), ao lado de especulações sobre a relação com adolescentes e inspiração do assassinato de John Lennon e do atentado ao ex-presidente Ronald Reagan. Em suma, tudo que Salinger desprezava em Hollywood parece ter se armado contra ele. “O documentário não respeitou o espírito, a seriedade e a qualidade do trabalho artístico de Salinger”, escreveu o editor de cinema do Village Voice, Alan Scherstuhl. É mais ou menos o mesmo incômodo que fica da leitura do livro.


O velho Salinger, o ermitão de Cornish (Michael McDermott/Intrinseca/Reprodução)
O velho Salinger, o ermitão de Cornish


Numa conclusão questionável, os biógrafos afirmam que a vida de Salinger foi “um suicídio em câmera lenta”, certamente em referência a personagens seus que se matam, como Seymour e Teddy. Para um homem que viveu 91 anos, sem deixar de trabalhar até o último de seus dias e de refletir sobre o sentido da existência, a afirmação chega a ser risível. Salinger morreu rompido com o mundo real, mas sua vida foi uma tentativa desesperada, e por vezes tocante, de tentar encontrar liames possíveis entre o mundo interior e o lado de fora. Afinal, e não precisa ser versado em vedanta para chegar a essa conclusão, somos todos suicidas adiados. A vida faz seu trabalho e sabe a hora de dar por encerrada a peleja sob o Sol.

PAIS E FILHOS A biografia Salinger serve ainda para repor antigas questõe. Por que ler Salinger hoje? O que um autor tão tipicamente dos anos 1940 e 1950, que em 1965 deixa de publicar para sempre, tem a dizer ao jovem de hoje? O fato é que seus livros continuam sendo vendidos e amados e parecem responder a questões que fazem parte do universo dos adolescentes, mesmo em contexto tão diverso. As pessoas ainda costumam, mais de 60 anos depois, presentear os jovens com volumes de O apanhador no campo de centeio.

Há, ainda, uma avaliação diferenciada do romance e dos contos do autor. Enquanto a saga de Holden Caulfield parece não corresponder à expectativa de uma segunda leitura mais madura, os contos se mantêm como exemplos de arte literária, sublime em alguns momentos. O Salinger estilista ainda se presta a releituras, o ideólogo pode ter ficado para trás, junto com as incoerências da puberdade.

O apanhador no campo de centeio não fez sucesso por acaso. É o tipo de livro que é esperado e que quando chega toma conta do território. Salinger captou, como pouca gente antes e depois dele, o impulso que faz do adolescente um tipo tão desajustado e carente de quem o entenda. É como se o jovem fosse o hardware da insatisfação com o mundo e o romance o software que tornasse tudo mais compreensível. Salinger deu conteúdo a um sentimento de inadequação.

Além disso, seu personagem, Holden, é urbano, vive problemas típicos da classe média e não se sente em casa no mundo. Tudo isso coroado por uma inteligência acima da média e uma sensibilidade quase doentia. Quem, aos 14 anos, não se identifica com esse perfil, levante a mão. Para completar uma possível explicação do sucesso do romance, Salinger cria uma voz literária e inaugura um modo de expressão que usa gírias e palavreado pouco literário. Dá à luz um estilo.

Para alguns especialistas, como Louis Menard, Salinger vai ainda mais longe: cria um novo gênero. Dessa forma, cada geração terá, a partir dos anos 1950, uma nova tentativa de rever o mesmo personagem no seu próprio contexto. Fariam parte do gênero O apanhador..., por exemplo, romances como A redoma de vidro, de Silvia Plath (1963); Medo e delírio em Las Vegas, de Hunther Thompson (1971); Brilho da noite, cidade grande, de Jay McInerney (1984); e Uma comovente obra de espantoso talento, de Dave Eggers (2000), para ficar apenas nos EUA. Sem falar em filmes como Os incompreendidos e Juventude transviada.

No entanto, parece faltar uma explicação mais humana para o sucesso dessa “lengalenga tipo David Copperfiled”. Por que será, por exemplo, que os pais dão o livro de presente para os filhos adolescentes? Certamente, não é para que eles fujam de casa, se embebedem e procurem prostitutas. Parece haver uma dialética entre inocência e amadurecimento que perpassa a trama de Salinger. Holden, no fim das contas, não gosta do que vê à volta e acaba sofrendo um colapso, mas percebe que tem sentimentos bons dos quais não quer abrir mão.

Talvez essa seja uma definição um pouco constrangida do processo educacional: queremos que nossos filhos sejam autênticos e tenham condições de desafiar o mundo e combater o que não concordam. Mas ao mesmo tempo torcemos para que sejam dotados de bom senso para entender os limites da revolta. Holden Caulfield parece lembrar a cada pai o jovem que um dia ele foi e que, por interposta pessoa, quer mostrar a seus filhos: “Olhe como eu era legal!”. E, quem sabe, esperem do filho um reconhecimento por suas capitulações: “Você até que não é tão ruim assim!”.

A crítica literária nunca se acertou com O apanhador no campo de centeio. Entre escritores, há desde entusiastas como Faulkner e Hemingway, a detratores como Mary McCarthy. Uns conseguem perceber a tragédia que boia em meio ao vocabulário vulgar e à personalidade doentia do personagem central; outros atacam a fuga de temas fundamentais, sobretudo o sexo, que faz da obra de Salinger, muito mais que um livro sobre adolescentes, um romance em si adolescente.

Do romance para os contos, Salinger avança tanto em termos humanos como literários. A família Glass é sua grande criação. Alguns contos estão entre os melhores escritos no século 20, como ‘‘Para Esmé, com amor e sordidez’’, ‘‘Franny’’ e ‘‘Um dia ideal para os peixes-banana’’, uma obra-prima absoluta. Além dos contos, os Glass, com Seymour à frente, protagonizaram algumas novelas, como Pra cima com a vida moçada, Seymour uma introdução e Zooey. São livros ambiciosos em termos filosóficos e estéticos, com sofisticada estrutura literária. Se há um pecado neles é a proximidade da perfeição, que por vezes soa como exibicionismo.

Todos os filhos de Les e Bessie Glass, casal de atores de vaudeville, são geniais, participaram do programa radiofônico Crianças sabidas e alimentam ambições metafísicas diversas. Um se torna padre, outro ator, há o que morre na guerra, o professor de escrita literária (Buddy, alter ego de Salinger), a dona de casa e a moça em crise espiritual. Todos sideram em torno de Seymour, gênio e santo, que é apresentado no primeiro conto sobre a família Glass, no qual suicida em frente da esposa, depois de brincar com uma menina na praia.

A obra madura de Salinger, relida, está mais nos contos e novelas que no romance. No entanto, em matéria de leveza, talvez ele nunca tenha superado O apanhador no campo de centeio e seus livros posteriores se perdem por vezes na prolixidade. Há um movimento, contudo, que parece dar unidade ao projeto do autor: do retrato do jovem sensível até o rompimento com o mundo materialista, com a corajosa afirmação de novos valores. O desajuste não era um problema, como parece no primeiro momento, mas uma escolha livre.

Nesse meio do caminho entre a inocência e a reinvenção do destino humano, Salinger levou a própria vida com todas as suas provações e prazeres. Embora ele tenha feito de tudo para ser Seymour Glass, com seu invejável patrimônio de sabedoria e independência – até mesmo no gesto final – tudo conspirou para que ele continuasse com Holden Caufield na alma. Sua obra é expressão desse “fracasso”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário