sábado, 10 de novembro de 2012

O erro de Dolores - José Castello



O Globo 10/11/2012

DOLORES, A IMPERFEITA, GOSTA DE SE OBSERVAR NO ESPELHO PARA ADMIRAR A MENINA PERFEITA QUE O HABITA



Dolores, a protagonista de “O tigre na sombra” (Record), novo romance de Lya Luft, é uma personagem exemplar. Sua vida — e sua infelicidade — se originam de um erro que caracteriza o mundo contemporâneo: a separação radical e sem esperança entre a realidade e a imaginação. Dolores já traz esta cisão em seu corpo: uma de suas pernas é mais curta do que a outra. “Não era propriamente um aleijão, mas me tornava diferente. Meu corpo entortado. Meu andar feioso, e a minha parceira, a dor”.

Mais intensa que a dor física, lateja uma dor invisível. Dolores, a imperfeita, gosta de se observar no espelho para admirar a menina perfeita que o habita. “Havia uma menina no espelho, igual a mim, mas não era eu”. Fora do espelho, um primeiro desencontro: rebelde e difícil, Dolores é, em tudo, o oposto da irmã, Dália, ela sim, alegre e “fácil de criar”. Mas a ruptura mais grave se dá entre ela e sua própria imagem. Fora do espelho, é Dolores, “nome escuro, de sombra”. A família não consegue pronunciá-lo e por isso a chama de Dôda, a menina que desejam que ela seja. A menina perfeita que habita o interior do espelho.

“Essa criança tem imaginação demais”, reclama a mãe. Para se livrar da acusação, Dolores despreza a realidade. “Realidade? Bobagem, cada um inventa a sua”. A cisão entre a realidade sombria e a imaginação fulgurante é a que mais dói. Há uma menina do real e uma menina do espelho, e as duas estão separadas para sempre. Não existe saída: ou ela se entrega ao sonho (e delira), ou se afunda na realidade deserta (e se deprime). Duas meninas distintas, como dois vestidos separados, e não como o avesso e o direito de um mesmo vestido.

Dolores, a menina do real, despreza o mundo concreto, apegando-se ao sonho de uma realidade oculta. Compara: “É como no mar: ninguém consegue imaginar o que existe lá embaixo”. Ao partir a existência em dois, ela se impõe um duplo castigo: jamais chegará a ser a menina perfeita que habita o espelho; e, em consequência, está condenada à sujeira e às oscilações do mundo exterior. Não consegue imaginar uma realidade que, apesar de áspera, guarda relâmpagos de beleza. Tampouco aceita a ideia de que também a imaginação e o sonho, para tomarem corpo, devem se contaminar com a borra da existência. Dolores não conhece o caminho do meio. E por isso vive sobre um abismo, e por isso não para de sofrer.

Dolores pensa no desejo da mãe: “Ela queria uma filha normal. Eu nunca fiquei normal”. Retida na mesma cisão, também à mãe — para quem o mundo é composto de duas partes que nunca encaixam — só resta o papel de sofredora. Acostumada à exigência de perfeição, Dolores não aceita o amor torto dos pais, onde “havia mágoa, raiva, revolta, submissão”. Enquanto isso, a mãe luta para desentortá-la e encaixá-la, à força, na imagem refletida no espelho. “Caminha direito, menina”, exige. Dolores se lamenta: “Mas, mãe, eu não consigo andar direito”. A mãe, porém, não abdica de seu sonho: “Então caminha menos torto”. Sonho que — como um veredicto — a impede de amar a realidade. Mãe e filha sofrem da mesma ilusão: vivem à espera do dia em que o mundo será inteiramente reto. Como esse dia jamais chegará, espezinham e denigrem a realidade.

A infeliz Dolores não consegue se amar. “Eu era uma menina cheia de problemas: tinha acessos de fúria ou de alegria sem explicação, vivia distraída”. É instável, claudicante, comete erros e paga por eles: é humana. E é justamente isso (o humano) que ela não aceita. A mãe espezinha: “Essa aí, que dizem ser tão inteligente, nem conhece os naipes de um baralho”. Para a mãe, a realidade é feita de norma e retidão. Como os naipes de um baralho, que são sempre os mesmos, inconfundíveis. A mãe crê que a norma é a essência do real. A filha a deseja como um sonho impossível. Ambas desprezam a vida, com suas falhas e deslizes. As duas bradam pelo fim da sujeira que entorta (e, no entanto, fertiliza) a existência.

Ambas opõem imaginação e realidade, e esse é seu grande erro. Um dia, exausta, a mãe leva Dolores a um médico, que profetiza: “Sua filha é uma artista”. E justifica: “ela tem uma imaginação muito ativa”. O doutor vê a imaginação de Dolores como um dom especial. Uma iluminação. A mãe, ao contrário, a vê como um defeito e uma agressão. Também para Dolores, a imaginação é só uma rota de fuga. Tudo o que presta é imaginário. Tudo o que é desprezível pertence ao real. E, nesse abismo, a dor interminável.

Na escola, Dolores sofre porque se sente imprestável para as “coisas lógicas”. Não consegue entender que esse defeito é também, e ao mesmo tempo, uma qualidade. Porque é imperfeita, sua vida é uma longa viagem através de uma estrada cheia de imagens belas, ainda que com um chão torto e esburacado. Fantasmas do passado, como o tio-avô Félix, que vive em uma cadeira de rodas envolto em sua manta, assombram seu cotidiano. Na casa de mar da avó querida, a empregada Nena — que não pode ter filhos — inventa um filho imaginário, chamado Deco, para se salvar. Como Dolores, também Nena acredita que só existe salvação fora do real. A realidade é pedra. A imaginação, água. Nem Dolores, nem Nena cogitam que a água pode perfurar a pedra e nela desenhar um futuro.

Na adolescência, e depois na vida adulta, as decepções de Dolores continuam. As experiências amorosas têm, primeiro, a aparência de um sonho. Mas, logo depois, essa imagem — como em um espelho partido — se racha, deixando sangrar a dor de existir. No entanto, essa dor é o tempero do mundo. A irmã Dália ainda sugere a Dolores que abandone seus sonhos e viva um pouco. “Olhe em torno, há muita coisa boa nessa vida, que você nem imagina”. Ela se espanta: “Mesmo pra mim?” Também Dália não escapará do sofrimento: casada, terá um bebê ciclope — com um só olho no meio da testa —, que não passará dos quatro meses de vida. Com seu único  e medonho olho, o bebê carrega no corpo o sonho, mas também o pesadelo, de um mundo completo. Um mundo único e fechado, no qual a divisão — marca do humano — é vivida como uma condenação

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