domingo, 9 de dezembro de 2012

E você, faria o quê? - Dorrit Harazim


O Globo - 09/12/2012

Início da tarde de segunda-feira
passada em Nova York. Na estação
de metrô da Rua 47 com Sétima
Avenida, um morador de rua
arruma encrenca com um desconhecido
na plataforma da linha Q. Cena
urbana corriqueira num sistema de
transporte utilizado diariamente por
5,2 milhões de usuários.

Após uma altercação rápida, o encrenqueiro
empurra o senhor de 58
anos para o fosso de trilhos da estação.
Na plataforma, alguns passageiros
gritam, outros agitam os braços
ou ouvirem o apito do trem. Mas o
condutor já nada pode fazer. A vítima
também não — restou-lhe a eternidade
de quinze segundos para ver o vagão
de frente.

No dia seguinte o tabloide “New
York Post” estampou uma foto de página
inteira que mostra o trem adentrando
a estação com seus dois faróis
a iluminar a tragédia anunciada. No
fosso, vê-se a vítima de costas voltada
para o vagão, a tentar erguer-se para a
plataforma. Os últimos poucos metros
ainda os separam. Sobre a imagem,
um título em letras garrafais:
“CONDENADO — empurrado sobre
os trilhos, este homem vai morrer.”

A partir daí o morto foi esquecido,
tragado por outra polêmica: é dever
do fotógrafo — profissional ou amador
— intervir quando uma tragédia
se apresenta à sua frente? É jornalismo
ou voyeurismo induzido publicar
uma imagem de morte iminente, de
impacto previsível sobre a emoção e a
imaginação do leitor?

A questão não é nova. De Walter
Benjamin (“Pequena história da fotografia”)
ao recém-publicado “About
to Die: How News Images Mode the
Public” (ainda sem tradução no Brasil),
de Barbie Zeliger, passando pelo
clássico de Susan Sontag (“Diante da
dor dos outros”), a complexa relação
entre fotojornalismo e humanidade
continua a atormentar.

Fotografias do Holocausto, da Revolução
Cultural chinesa, de linchamentos
de negros nos Estados Unidos,
de genocídios ou corpos que despencaram
das Torres Gêmeas são
perpetuamente analisadas sob este
prisma.

Um caso citado à exaustão como
exemplar desse impasse moral é o do
sul-africano Kevin Carter, autor da foto
premiada com o Pulitzer de 1993. A
imagem mostra uma menina africana
esquálida, à beira da inanição, acocorada
num chão empoeirado do Sudão.
Atrás dela, na mesma terra batida,
um abutre quase maior do que a
menina está à espreita.

Carter contou que permaneceu
imóvel por 20 minutos à espera de
que a ave abrisse as asas para melhor
compor o cenário do horror. Mas o
urubu não se mexeu. Ainda assim, a
imagem tornou-se ícone e catapultou
o autor para a fama.

Junto com a fama veio a cobrança:
por que ele não largou a câmera e foi
socorrer a menina? Carter suicidouse
um ano após receber o Pulitzer e
são frequentes as associações entre
uma coisa e outra. Elas são indevidas,
por simplistas.

Sua vida extraprofissional sempre
fora sujeita a tormentas profundas.
Seus muitos anos de coberturas de
tragédias humanas, narradas em parte
num livro obrigatório sobre o tema
(“Clube do bangue-bangue”, de Greg
Marinovich e João Silva), apenas
agravaram o quadro.

Agora, foi com ímpeto de justicialismo
moral que a opinião pública se
voltou contra Umar Abbasi, o autor
da foto do morto no metrô.

De acordo com sua versão do ocorrido,
naquela segunda-feira ele havia
concluído um serviço para o “Post” e
entrara na estação com uma mochila
contendo 10kg de equipamento nas
costas. Trazia a câmera na mão, como
sempre.

Em determinado momento, ouviu
uma grande agitação na plataforma
mais à frente. Levou alguns segundos
até entender o que ocorria. “Ao ver as
luzes da composição à distância me
ocorreu alertar o maquinista disparando
o flash. Bati as chapas segurando
a câmera com meu braço estendido,
longe dos olhos”, relatou. Pelas suas
contas, disparou o flash 49 vezes,
sem focar nem mirar no homem nos
trilhos, prática corriqueira de quem
não tem visão direta do objeto a ser
fotografado.

Abbasi não se conforma em ser alvo,
sozinho, do linchamento moral.
Com razão. Nem um único passageiro
da plataforma se aproximou do
fosso para tentar içar a vítima a tempo;
apenas gritavam para que ela saísse
dos trilhos. Pior: praticantes da
cultura da imagem instantânea, muitos
ainda sacaram seus smartphones
e se puseram a fotografar o corpo sendo
retirado após o choque. Apenas
(ainda) não as revenderam.

Passada uma semana de estridência
nas redes sociais, o autor do empurrão
fatal foi identificado e preso e
Abbasi recebeu algum respiro. Afinal,
a obrigação moral de intervir ou não
deveria ser indistinta para fotógrafos
ou meros transeuntes. São decisões
tomadas em frações de segundos diante
de situações extremas que nem
sempre seguem a lógica da razão.
Que o digam as inúmeras vítimas de
assalto no Brasil que reagem de forma
imprevisível.

“Estamos falando de meros reflexos.
Você está no piloto automático e
nem sempre atua de forma racional”,
declarou em defesa de Abbasi o britânico
Stuart Franklin, ex-presidente da
agência Magnum e autor da famosa
foto do manifestante chinês que enfrentou
a fileira de tanques na Praça
da Paz Celestial, em 1989.

Por sorte, nem todos os bípedes
têm reflexos iguais. Cinco anos atrás,
um jovem estudante de cinema perdeu
a consciência por alguns segundos
e caiu nos trilhos de uma estação
de metrô do Harlem. O operário da
construção civil Wesley Autrey, de 51
anos, estava na plataforma com as filhas
de 4 e 6 anos de idade. Num impulso,
entregou as meninas a um desconhecido
a seu lado e saltou para o
fosso. Ali, arrastou o jovem desacordado
para o vão dos trilhos, de meio
metro de profundidade, e o cobriu
com o próprio corpo. Assim permaneceu
até a parada do trem, que estacionou
2,5cm acima de ambos. Foram
resgatados 40 minutos depois,
com pouquíssimos machucados. Autrey
é saudado e reconhecido até hoje
como o “Herói do Metrô”.

Na época, ganhou um jipe Patriot,
uma bolsa de estudos para cada filha,
várias comendas e presentes. Continua
trabalhando como operário.
Considera-se um homem feliz. 

Dorrit Harazim é jornalista

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