sábado, 29 de dezembro de 2012

Thatcher admitiu surpresa por invasão 'estúpida' das Malvinas

FOLHA DE SÃO PAULO

Arquivo Nacional britânico libera aproximadamente 3.500 documentos secretos sobre conflito
Reino Unido ameaçou romper com a França por causa de venda de mísseis Exocet para latino-americanos
BERNARDO MELLO FRANCODE LONDRESEstúpida, absurda e ridícula. Assim a então primeira-ministra britânica Margaret Thatcher descreveu a decisão da ditadura militar argentina de invadir as ilhas Malvinas, num depoimento mantido em sigilo durante 30 anos.
A ação pegou a Dama de Ferro de surpresa e deu início a uma guerra que mataria mais de 900 pessoas entre abril e junho de 1982. Suas tropas conseguiram retomar as ilhas, que são chamadas de Falklands no Reino Unido.
Ontem, o Arquivo Nacional britânico liberou cerca de 3.500 arquivos secretos sobre o conflito. Entre eles, o depoimento em que Thatcher justificou o susto com a invasão a uma comissão independente que investigou a guerra.
"Eu nunca, nunca esperei que os argentinos fossem invadir as Falklands. Era uma coisa tão estúpida... era estúpido até mesmo para se imaginar", disse a primeira-ministra. "Eu achava que seria tão absurdo e ridículo que eles jamais fariam isso."
Depois, quando a invasão se consumou, Thatcher disse ter vivido "o pior momento" da sua vida. Ela afirmou que não sabia, na madrugada em que foi avisada da ação militar, se conseguiria reconquistar o território dos argentinos.
"Ninguém podia me dizer se nós poderíamos retomar as ilhas. Ninguém podia", frisou. "Nós não sabíamos."
Outro documento liberado ontem mostra que Thatcher ameaçou romper relações com a França para pressionar o então presidente François Mitterrand a suspender a venda de mísseis Exocet ao Peru. Ela afirmou que o armamento poderia cair nas mãos da ditadura argentina.
"Isso teria um efeito devastador na relação entre os nossos países, que são aliados", disse a primeira-ministra num telegrama secreto.
Os papéis do governo britânico também mostram que Thatcher chegou a admitir a possibilidade de ceder para evitar um conflito depois da invasão militar das ilhas.
Seus planos não incluíam abrir mão da soberania sobre o território, mas previam medidas como a entrada de representantes da Argentina na administração local.
A proposta foi recusada pelo governo do general Leopoldo Galtieri (1926-2003), que forçou o início da guerra. Ele renunciaria após a derrota militar para o Reino Unido, que selou o fim da ditadura militar na Argentina.
Em discussões internas do governo britânico, Galtieri chegou a ser descrito como um alcoólatra que não devia ser levado a sério. Mas o embaixador em Buenos Aires, Anthony William, advertiu que o país não era uma "república de bananas".
A lei britânica prevê a divulgação de papéis secretos do governo depois de 30 anos. Para pesquisadores, o depoimento de Thatcher sobre as Malvinas foi um dos documentos mais importantes a serem liberados no país nos últimas décadas.
"A guerra já foi tema de muitos livros e pesquisas, mas isso nunca tinha vindo à tona. O depoimento de Thatcher, em linguagem muito emocional, deixa claro que ela realmente foi pega de surpresa e estava insegura sobre as chances de vitória", disse à Folha Simon Demissie, historiador do Arquivo Nacional.
As Malvinas ainda causam atritos entre o Reino Unido e a Argentina. Em junho, durante reunião do G20, o premiê David Cameron se recusou a receber carta em que a presidente Cristina Kirchner pedia a devolução das ilhas.

    Papéis mostram ação do Brasil para pôr fim a conflito
    DE LONDRESEm telefonema para Margaret Thatcher, o então presidente americano Ronald Reagan (1981-89) disse ter apoio do Brasil para negociar a interrupção da Guerra das Malvinas antes da "humilhação total" da Argentina.
    A conversa entre a Casa Branca e Downing Street, sede do governo britânico, ocorreu no fim da noite de 31 de maio de 1982. A ditadura argentina anunciaria a rendição duas semanas depois.
    Segundo um documento divulgado ontem pelo Arquivo Nacional britânico, o telefone de Thatcher tocou às 23h30, horário de Londres.
    Reagan disse a ela que o então presidente brasileiro, general João Figueiredo, concordava que era preciso parar logo o conflito. Os dois presidentes haviam se encontrado duas semanas antes.
    O americano sugeriu a Thatcher decretar o cessar-fogo e passar o controle das Malvinas para uma tropa de paz internacional. Ela recusou com o argumento de que o Reino Unido foi atacado e perdeu muitos soldados na guerra.
    Na conversa, Reagan argumentou que os EUA queriam evitar a volta de um governo peronista na Argentina. Washington apoiou o Reino Unido, mas mantinha aliança com as ditaduras militares que dominavam quase toda a América do Sul.
    O governo Figueiredo deu apoio velado a Galtieri na guerra, mas manteve posição formal de neutralidade.
    Em outros papéis liberados ontem, o então embaixador britânico em Brasília, George Harding, acusa o governo brasileiro de fazer vista grossa ao tráfico de armas da Líbia de Muammar Ghaddafi para a ditadura argentina.
    Ele relata uma viagem sigilosa a Recife, onde teria ouvido de um informante que os argentinos escondiam mísseis em caixas de madeira dentro de Boeings 707 da Aerolineas Argentinas.
    TRÍPOLI
    Os aviões tiveram permissão da Aeronáutica para reabastecer em território brasileiro no caminho entre Trípoli e Buenos Aires.
    O caso veio à tona em março deste ano com a liberação de documentos da ditadura guardados no Arquivo Nacional em Brasília.
    Os papéis liberados ontem em Londres ainda registram a intensa pressão da diplomacia britânica para liberar um bombardeiro Vulcan que ficou retido na base aérea do Galeão, no Rio, após invadir o espaço aéreo brasileiro.
    O avião militar sofreu uma pane sobre o Atlântico e teve que fazer um pouso de emergência no Brasil.
    Em telegrama confidencial, o embaixador Harding disse que a demora em liberar o Vulcan refletia a proximidade entre as ditaduras do Brasil e da Argentina.
    PROMESSA
    O impasse foi resolvido depois de alguns dias, e o avião teve autorização para decolar sem armamento e mediante a promessa de que não seria mais usado na guerra.
    (BMF)

      Jornais dos países abordam tema de forma diferente
      DE LONDRESOs jornais do Reino Unido e da Argentina deram enfoques bem diferentes ontem aos documentos secretos do governo britânico sobre a Guerra das Malvinas.
      A imprensa inglesa, que teve acesso prévio aos papéis sob a condição de só divulgá-los ontem, deu prioridade ao depoimento da primeira-ministra Margaret Thatcher à comissão independente que investigou o conflito.
      Mantido em segredo há 30 anos, o documento foi tema das principais reportagens dos jornais e da BBC, a rede pública de rádio e TV.
      Os ingleses também dedicaram bastante espaço às negociações entre Thatcher e o presidente americano Ronald Reagan. Os dois políticos conservadores foram os líderes mais importantes de seus países na década de 1980, na fase final da Guerra Fria.
      Já a imprensa argentina preferiu dar destaque aos documentos secretos que registram o almoço no qual Thatcher determinou o ataque ao cruzador Belgrano. O naufrágio causou a morte de 323 soldados argentinos e é considerado um crime de guerra pelo país.
      Os sites da mídia argentina também abordaram a ameaça da britânica de atacar a Argentina continental (não apenas o arquipélago disputado).

        Nenhum comentário:

        Postar um comentário