quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Marina Colasanti - A tomar com reverência‏

Hoje não é apenas um bar, é uma holding com filiais no mundo inteiro

Marina Colasanti
Estado de Minas: 10/01/2013 
Ainda é tempo de pêssegos. E que safra suculenta temos tido! Para comemorar essa fartura, nada como tomar um Bellini, a bebida mais elegante que o verão possa oferecer, duplamente oportuna neste momento, quando se anuncia que a família Cipriani deixa a gerência do Harry’s Bar, onde ele foi criado.

Passei diante do Harry’s Bar quando jovem, sem cacife para entrar. Agora volto a ele alongando a mão, e colhendo em minha estante o livro Il mio Harry’s Bar.

O Harry’s de hoje não é apenas um bar, é uma holding com filiais no mundo inteiro. Mas em Veneza é muito mais que um bar, é uma tradição, que com o festival de cinema, os cavalos de bronze da Praça São Marcos e o chapinhar de gôndolas e lanchas, forma uma coisa só. 

Certo, não é tão antigo quanto os canais, nenhum doge teve o prazer de sentar-se a uma de suas mesinhas para um aperitivo ou um almoço, mas houve um dia, em 1935, em que em mesas diferentes estavam instalados quatro reis. Ali erguiam copos e empunhavam garfos Alfonso XIII da Espanha, Guilhermina da Holanda, Paulo I da Grécia e Pedro II da Iugoslávia.

Havia começado bem, pela mão de Giovanni Cipriani, em 1931. No primeiro e único livro de assinaturas do bar constam Marconi, Toscanini, Chaplin, Somerset Maugham, Barbara Hutton, Hemingway, Truman Capote e tantos outros que naquele tempo eram pessoas ilustres e hoje rebaixaríamos para a categoria de famosos.

Só ficou fechado durante a Segunda Guerra, quando, requisitado para tornar-se refeitório da Marinha, foi obrigado a mudar de nome. Harry não servia para um país em luta contra ingleses e americanos. Tornou-se Bar Arrigo, as autoridades fascistas não se deram conta, ou se deram e lhes pareceu suficiente, que Arrigo era a tradução italiana de Harry.

Naqueles anos duros, quando as mulheres da família Cipriani desafiavam as metralhadoras para ir ao campo em busca de alimentos, muitos clientes continuaram indo por volta do meio-dia bater à porta da casa de Giovanni para tomar seu aperitivo. 

O cliente do Harry’s Bar até hoje mais citado é Hemingway. Apareceu no bar pela primeira vez no inverno de 1949 e, a partir de então, teve mesa fixa, a um canto. A foto dele com Giuseppe e uma fileira de copos vazios ainda está junto à entrada. 

Tomava dry Martini, que chamava Montgomery, e que devia obedecer a uma proporção precisa, segundo ele a mesma com que o general inglês gostava de guerrear: um por 15. Uma dose de Martini dry para 15 doses de gim, ou, no caso da guerra, 15 soldados ingleses contra um soldado inimigo. 

Para tomar Martini ia ao Harry’s Bar, e para caçar patos selvagens hospedava-se na Locanda, numa das ilhas da laguna, também da família Cipriani. Ali Hemingway tinha um pequeno apartamento, e ali escreveu Do outro lado do rio, e entre as árvores. 

Agora, Arrigo Cipriani, o filho, entrega a gerência da holding ao fundo de investimentos que detém 20% da empresa. Ficam a história, a tradição, e as receitas. A do Bellini é assim:

Pêssegos maduros, de casca rosada. Prosecco, melhor se for de Conegliano, ou mesmo champanhe. Os pêssegos devem ser espremidos no chinois, no espremedor de batatas ou na centrífuga, nunca no liquidificador. São 3/4 de prosecco e 1/4 de suco de pêssego. A tomar gelado, com reverência.

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