quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Pasquale Cipro Neto

folha de são paulo

"Esporte de verdade"
É por essas e outras que quase sempre ficamos lá embaixo nos certames internacionais de compreensão de texto
Como dizia um velho amigo, "não há limite para o pior". Parece que a intolerância (substantivo que, por eufemismo, emprego no lugar de outro) é a regra, a norma, o padrão vigente. E um dos grandes pilares dessa "intolerância" (termo que, repito, emprego por eufemismo) é a incapacidade de ler, compreender, analisar, relacionar, contextualizar etc.
Na semana passada, um dos meus filhos foi me buscar em Guarulhos. Depois de falarmos disto e daquilo, ele me perguntou se eu tomara conhecimento da "polêmica" causada por uma fala de Tiago Leifert no "Globo Esporte". Eu tinha ficado dez dias fora do país e, embora tivesse entrado na internet inúmeras vezes, não soubera do caso.
Já em casa, entrei no YouTube e vi Leifert dizer algo como "Agora vamos falar de esporte de verdade", logo depois da exibição de uma matéria em que se falava de doping no ciclismo.
Pois bem. Fiquei sabendo que choveram mensagens de "repúdio" à declaração de Leifert. Também choveram pedidos de retratação (um deles era de uma federação de ciclismo). Impressionante! Haja falta do que fazer! Haja incapacidade de compreensão do texto e do contexto! Haja complexo de inferioridade!
O caso me lembra o da peça publicitária da Caixa Econômica em que aparecia um Machado de Assis branco como Papai Noel. Qual foi a manifestação mais ouvida e lida? "Racismo!!!" Ora pipocas! Escrevi sobre isso quando a peça foi ao ar: o nome correto disso nem de longe é racismo; o nome disso é ignorância, arrogância. Os idealizadores da peça devem ter escrito "Machado de Assis" no Google (imagens) e... Teria bastado uma simples consulta a um dos bons especialistas em Machado para que se "descobrisse" que nosso grande escritor era mulato.
O episódio de agora parte da mesma premissa, enviesada, torta e, sobretudo, intolerante (repito: é eufemismo), que pressupõe que Leifert só pode ter dito o que disse porque acha que o ciclismo não é esporte de verdade. Na cabeça dessa gente não passa levar em conta o contexto: falava-se de doping, de esporte maquiado etc., o que nos leva a entender (desde que a alma não seja pequena e desde que a mente seja aberta, livre de complexos) que, no caso, "esporte de verdade" é qualquer um (repito: qualquer um) em que não haja (atentem para o emprego de "haja" e não de "há") o uso de porcarias. É claro que a alma limpa nos faz pressupor que Leifert não é imbecil a ponto de achar que no futebol não há (atentem agora para o uso de "há") doping e de desconhecer os inúmeros casos já registrados nesse e em muitos outros esportes.
Nos comentários que li, muita gente diz que Leifert é gênio ou idiota, que só diz maravilhas ou só diz besteiras, que o adora ou o odeia etc. Nada disso importa. A análise de um caso como esse requer a circunscrição à essência. Nada de divagações ou de remissões a declarações de Leifert ou de quem quer que seja sobre fatos que não dizem respeito ao episódio em tela. Será que isso é tão difícil assim?
É por essas e outras que quase sempre ficamos lá embaixo nos certamens internacionais de leitura e compreensão de texto. Não sabemos ler, porque não sabemos pensar. Pensamos mal; pensamos torto.
Vou repetir aqui o que escrevi há algum tempo: 1. Toda vaca voa; 2. Mimosa voa; 3. Conclusão: Mimosa é uma vaca. Certo, não? Nada disso. ERRADO, erradíssimo! Dizer que toda vaca voa não significa dizer que tudo que voa é vaca.
O que ocorreu no episódio Leifert/ciclismo acontece milhões de vezes por dia na internet e nas tais "redes sociais". Muitos dos comentários a respeito de um sem-número de textos e declarações constituem a mais pura demonstração de incapacidade de ler, de relacionar, de contextualizar. Haja paciência! É isso.

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