segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

A MORTE LENTA DO VELHO CHICO » Mistura perigosa-Mateus Parreiras e Luiz Ribeiro‏

Relatório sobre qualidade da água do São Francisco indica concentração acima do permitido de poluentes em áreas industriais, violação apontada por especialistas como a mais grave no rio 

Mateus Parreiras e Luiz Ribeiro
Estado de Minas: 18/02/2013 
São Gonçalo do Abaeté, Três Marias e Januária – De um dia para o outro, a pescadora Maria Rosilene de Souza, de 40 anos, percebeu erupções em áreas sensíveis do corpo, como as axilas e a virilha. “Fiquei com a pele toda irritada e apareceram feridas. Depois, apareceram em outras pessoas que vivem na beira do Rio São Francisco”, conta. A mulher conseguiu se tratar do problema em Belo Horizonte graças à ajuda da associação dos pescadores de São Gonçalo do Abaeté, que aponta a poluição industrial como uma das responsáveis pela intoxicação de moradores e peixes na região. A avaliação de que a indústria contribui para piorar a qualidade da água é confirmada por especialistas e por relatório oficial sobre o mais importante rio de Minas.

Como mostrou ontem o Estado de Minas, a mais recente análise do Instituto Mineiro de Gestão Águas (Igam) apontou que oito (57%) dos 15 pontos de monitoramento do Rio São Francisco apresentavam níveis de agentes poluidores acima do tolerado pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama). Os poluentes considerados mais tóxicos foram encontrados justamente na área de 20 quilômetros em que atua diariamente a pescadora Maria Rosilene, entre a barragem do Lago de Três Marias e o município vizinho de São Gonçalo do Abaeté, na Região Central de Minas.

Há dois índices ruins apontados pelo relatório do Igam na região de Três Marias e São Gonçalo do Abaeté. Próximo à ponte da BR-040 sobre o Rio São Francisco foram detectadas violações dos níveis de coliformes fecais: estão 400% acima do limite estabelecido pelo Conama. Nesse caso, o Igam indica o lançamento de esgoto doméstico como vilão. Mas no trecho de monitoramento seguinte, na foz do Rio Abaeté, a 19 quilômetros da ponte, há vestígios de contaminação das águas pela indústria. Nesse ponto, o Igam registrou níveis de sulfetos 4.400% maiores do que o máximo permitido. Para se ter ideia, o Conama estima que o limite para esse tipo de substância seja de 0,002 miligrama por litro de água. No trecho que antecede a foz do Rio Abaeté, a concentração salta para 8,8 miligramas por litro.

Contaminação Sulfetos são combinações de enxofre com outros elementos químicos, em geral metais pesados, como chumbo e zinco. “Encontrar sulfetos na água é uma violação muito séria, a mais grave em todo o rio”, alerta o biólogo Rafael Resck, mestre em ecologia aquática, consultor em recuperação de ecossistemas e responsável por levantamentos no curso d’água para a Cemig. Embora tenha apontado o lançamento de esgoto doméstico como causa do alto índice de coliformes fecais perto de Três Marias, o Igam não especificou que fonte pode ser responsável pela contaminação por sulfetos. O biólogo Rafael Resck diz que a alta concentração é decorrente de atividade industrial.

“Sulfetos são indicadores diretos de poluição industrial. Efluentes de esgotos contêm sulfetos, mas em quantidade pequena. Para atingir um nível desses em um rio volumoso como o São Francisco, é indicador de uso industrial”, afirma Resck. Paulo dos Santos Pompeu, coordenador do Laboratório de Ecologia de Peixes da Universidade Federal de Lavras (Ufla), acrescenta que “sulfetos são usados de maneira associada a vários tipos de minério. Quando se remove o metal, o sulfeto é um dos resíduos dessa produção”.

Os dois especialistas alertam que a quantidade de sulfetos apontada pelo relatório do Igam é ameaça aos peixes e aos seres humanos. “Nessa concentração encontrada pelo Igam, os sulfetos chegam a matar peixes e a contaminar o homem”, afirma Rafael Resck. “Os sulfetos agem principalmente no potencial de hidrogênio (pH), tornando a água mais ácida e inóspita para a vida aquática”, emenda Paulo dos Santos Pompeu.

Cobre em alta
concentração


A alta concentração de sulfetos não é o único problema relacionado a atividades industriais apontado pelo mais recente relatório do Instituto Mineiro de Águas sobre a qualidade da água do Rio São Francisco. Na cidade de Januária, no Norte de Minas, onde é frequente o lançamento de esgotos domésticos na rede pluvial e em ligações clandestinas que atingem o Rio São Francisco, foram detectadas concentrações de cobre 31% superiores ao máximo permitido pela legislação. A violação é atribuída a atividades industriais. Segundo o biólogo Rafael Resck, é comum indústrias e curtumes aproveitarem para “camuflar” seus efluentes e lançá-los em meio aos dejetos sanitários. O cobre pode acarretar lesões ao fígado humano e é nocivo aos peixes, causando coagulação do muco das brânquias e matando os animais por asfixia.

Há também afluentes do Rio São Francisco em situação crítica. No Rio Borrachudo, que corta a cidade de Tiros, no Alto Paranaíba, a 365 quilômetros de Belo Horizonte, representantes do Instituto Estadual de Florestas (IEF) apontaram que a mineração e garimpos clandestinos contribuem, com lançamento de rejeitos, para a alta concentração de sulfetos. Segundo o o relatório do Igam, o índice na região está 900% acima do limite do Conama. Além disso, o instituto detectou também violações para fenois, da ordem de 33% acima do limite. Esse composto é um ácido que resulta de atividades siderúrgicas e industriais potencialmente tóxico ao homem, organismos aquáticos e micro-organismos. É considerado substância cancerígena.
Manga, Pirapora e São Francisco – Do seu casebre baixo e de madeira na ilha rodeada pelas águas rápidas do Rio São Francisco, os pescadores Valeriano Nunes, de 56 anos, Adão Dias, de 54, e Luiz Carlos Gonçalves, de 36, observam mais um grande surubim descer boiando a correnteza. “Vinte quilos, no mínimo”, arriscam. Num barco, perto do peixe, o cheiro forte e o inchaço demonstram que está em estado de decomposição, indicando que não morreu por ali. “Há uns cinco anos isso ficou comum. Vemos descer até 10 surubins mortos”, reclama Adão, morador do município de São Francisco, no Norte de Minas “Pescar um grande desses é difícil. A poluição mata antes de a gente conseguir fisgar”, completa. 

A diminuição dos cardumes no Rio São Francisco é uma das questões enfrentadas na bacia. Pescadores sustentam que a morte dos peixes vem se repetindo e relacionam o problema à poluição das águas. “Já vi surubim de 20 quilos morto no rio. E os peixes continuam morrendo”, diz o pescador João Augusto Rodrigues dos Santos, de 58, de Pirapora, também no Norte do estado. “O rio já teve muito peixe. Com o passar dos anos, diminuíram por causa da poluição”, acredita Wilson Pereira da Silva, outro pescador da cidade. Em Pirapora, a reportagem do EM localizou pelo menos duas manilhas que lançam poluição diretamente no leito do Rio São Francisco, situadas próximo ao distrito industrial do município. 

O biólogo Patrick Valim, que trabalha para o Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE) de Pirapora, sustenta que, pela legislação, quando recebem ou renovam as licenças ambientais, as indústrias da cidade se comprometem a tratar seus resíduos. “As indústrias só podem jogar efluentes no São Francisco se fizerem o devido tratamento. Elas são fiscalizadas pelos órgãos ambientais”, diz Valim.

 Em Manga, pescadores também denunciam problemas. “Acho que as futuras gerações não vão poder ver peixe nesse rio. A cada ano a situação piora”, diz Zezinho Lourenço de Lima, residente na ilha do Pau Preto. Último município mineiro banhado pelo Rio São Francisco, Manga acaba recebendo o que já foi descarregado no Velho Chico ao longo de seu curso por Minas. Trabalhadores da região, como Leonardo Novais, dizem que esgotos da cidade, que incluem rejeitos de atividades de comércio, são lançados no rio por meio da rede pluvial.

Sem registros oficiais Apesar dos relatos de pescadores sobre a mortandade de peixes ao longo do Rio São Francisco, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) afirma não registrar denúncias de morte de peixes no Rio São Francisco desde 2011 – embora reconheça que a mortandade ficou mais frequente a partir de 2005. A Cemig, no entanto, que opera a barragem de Três Marias, admite que espécimes morreram de causas ainda não determinadas no curso do rio, depois do barramento, entre os dias 18 e 23 de janeiro deste ano. 

“Equipes de limnólogos (especialistas que estudam reservatórios) da Cemig estão realizando amostragens físico-químicas para confirmar o evento e o resultado deve fornecer evidências do que está acontecendo” informou a companhia energética por meio de nota. A hipótese levantada pela Cemig, no entanto, é de que os animais aquáticos tenham morrido “em consequência de a água que passa pelas turbinas e sai no rio abaixo da barragem apresentar baixas concentrações de oxigênio dissolvido”, afirma a nota da empresa. 

A Semad afirma que vem agindo no monitoramento das possíveis fontes poluidoras ao longo do rio e que para isso foi criada uma “rede de cooperação interinstitucional em pesquisas e ações relacionadas à mortandade de peixes e ao monitoramento ambiental na bacia do Alto e Médio São Francisco.” O grupo é formado por estudiosos, pesquisadores, representantes do estado, Ministério Público e de outros estados, além da Prefeitura de Três Marias.

Com respeito à Votorantim Metais, a pasta informou que a empresa citada “já foi multada e se adequou”, mas indicou que há “outros fatores que também causam ou contribuem (para a mortandade dos peixes), como agrotóxicos, chuva, inversão térmica no reservatório, entre outros”.
Enquanto isso...
…Aterro preocupa 
em Lagoa da Prata

De um lado, a cidade de Lagoa da Prata, uma das que margeiam o Rio São Francisco, no Centro-Oeste mineiro, exibe um moderno aterro sanitário que é modelo de preservação para as cidades vizinhas. Mas, ao lado dessa estrutura, líquidos espessos e espumas verdes vazam de um monte coberto de grama a poucos metros de estradas e de mananciais que abastecem o Rio São Francisco. O chorume, nome dado ao líquido concentrado que mina do lixo compactado, pode tornar impuras águas subterrâneas e até contribuir para a suspensão do abastecimento de mananciais. A situação foi flagrada no antigo aterro controlado, que encerrou as atividades em 2008, após informações do Instituto Estadual de Florestas (IEF) e da Polícia Militar de Meio Ambiente (PMMA). De acordo com a secretaria de Meio Ambiente de Lagoa da Prata, o problema não era de conhecimento da prefeitura e será averiguado.

Pescadores reclamam de indústria 
Mateus Parreiras e Luiz Ribeiro

Diante de casos de intoxicação de moradores e peixes, pescadores de São Gonçalo do Abaeté, na Região Central do estado, dizem ter redobrado a atenção com as atividades da Votorantim Metais, antiga Companhia Mineira de Metais (CMM), única indústria de grande porte que faz lançamentos no Rio São Francisco entre Três Marias e São Gonçalo do Abaeté. A planta em Três Marias usa sulfetos no processo de produção de zinco e de ácido sulfúrico. 

“Estamos atentos porque a morte dos peixes acaba com nosso sustento. No fim do ano passado, por exemplo, vimos caminhões transportando material contaminado na estrada da CMM”, diz o presidente da Associação dos Pescadores de São Gonçalo do Abaeté, Moisés Cirino Nunes dos Santos. “O que derramava (dos caminhões) poderia chegar ao rio com as chuvas e, por ser concentrado, poderia matar peixes como o surubim e o dourado”, acrescenta.

A Votorantim Metais garante que cumpre as obrigações ambientais e que seu complexo industrial em Três Marias nada tem a ver com a contaminação no Velho Chico. “Não existe relação entre o percentual de sulfeto encontrado pelo Igam no Rio São Francisco e nossas operações. Realizamos o monitoramento de efluentes, com análises feitas por laboratório credenciado pelos órgãos ambientais, e não foi verificada a presença de sulfeto em nossos efluentes”, afirma o gerente-geral de Sustentabilidade da empresa, Ricardo Barbosa. Ele também negou que tenha ocorrido contaminação devido a problema no transporte de materiais para novo depósito. “Houve denúncia, mas uma análise constatou que não houve impacto.”

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