segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Tendências/Debates

folha de são paulo

ALDO PEREIRA
Homo medicinalis
O orçamento do oligopólio multinacional dos remédios supera o da maioria dos países. Afinal, não sai barato adular médicos e burocratas
Ele toma Prozac para elevar o moral, Ritalina para elevar a concentração e Viagra para outras levitações. Logo adiante, ele terá na farmácia de seu banheiro mais drágeas e comprimidos, receitados para doenças degenerativas como reumatismo, hipertensão, diabetes, insuficiências hormonais e disfunções várias. Será, então, assumido dependente de drogas.
Em compensação, viverá mais, não apenas para contentamento próprio, mas também para o dos acionistas da Big Pharma (cognome do oligopólio multinacional dos remédios): quanto mais cada espécime de "H. medicinalis" durar, maior será sua despesa cumulativa e progressiva com farmácia.
Orçamento da Big Pharma supera o da maioria dos países. Afinal, não sai barato adular e persuadir médicos e burocratas que decidem compras estatais de remédio. Nem campanhas como as de convencer o público de que tal comprimido cura gripe e resfriado. (Mesmo que não cure, e mesmo que resfriado e gripe sejam doenças diferentes quanto a sintomas e causas.) E quanto não cobra o lobby já denunciado como ativo na limitação legal da concorrência de genéricos?
Mas não é justo desconsiderar o custo real de combinar segurança e eficácia nos remédios. Leve em conta a loteria de drogas novas buscadas por Big Pharma. Pesquisar, desenvolver, testar e distribuir pode custar milhões de dólares, em geral com retorno que não se inicia em menos de cinco a dez anos. Após os quais, nem toda patente garante lucro, seja pelo advento de sucedâneos mais eficazes e seguros, seja por imprevisto e desastroso efeito colateral duma droga nova.
Na semana passada, a Merck concordou em pagar US$ 688 milhões a investidores queixosos de lambanças com Vytorin, indicado para controle de colesterol.
Tais considerações práticas levam Big Pharma a descartar projetos que, embora menos proveitosos, atenderiam suposto compromisso social com preservação da saúde pública. Exemplo em debate é o relativo desinteresse em pesquisa e desenvolvimento de antibióticos (drogas indicadas para tratamento específico de infecções por bactérias; distintas, portanto, das usadas contra vírus, fungos e parasitas).
Descobrir novos antibióticos se mostra cada vez mais necessário ante o crescente registro de bactérias resistentes aos disponíveis hoje. Por exemplo, as causadoras de tuberculose. Ou a mortífera bactéria KPC, ou "Klebsiella pneumoniæ carbapenemase" ("carbapenemase" é a enzima que resguarda "K. pneumoniæ" contra antibióticos atuais). KPC vem matando gente no mundo desde 1990: faz alguns meses, matou e hospitalizou dezenas de pessoas em Brasília.
KPC é particularmente letal para pacientes internados em Unidade de Terapia Intensiva (UTI) em razão da baixa defesa natural; e, como em exacerbação de perversidade, também representa risco decorrentemente aumentado para o pessoal que atende UTIs.
Big Pharma alega razão plausível para omitir-se no caso: lucro de antibióticos é tipicamente baixo e dura pouco. Com isso, a missão fica para instituições públicas, estas em geral carentes de tecnologia e verba. Exceção: os Institutos Nacionais de Saúde (nome plural, sim) dos EUA, que vêm buscando antibióticos ao custo de mais de US$ 300 milhões, sem falar em riscos: recentemente, pesquisadores dos INS quase morreram infectados por KPC.
Big Pharma deveria colaborar. Ter em conta que preservação de liberdades e eficiência justifica, sim, o capitalismo, mas com a condição de o sistema honrar a responsabilidade social inerente a toda atividade econômica.


JOSÉ OTÁVIO COSTA AULER JUNIOR
O impacto das cotas na qualidade do ensino
A nova política de cotas de São Paulo terá impacto negativo na qualidade dos alunos. O prejuízo para universidades pode ser irreparável
No momento em que projeto do governo paulista propõe novas regras para o acesso às universidades públicas estaduais, devemos analisar qual é a finalidade e o papel das mesmas em uma nação que pretende se inserir num mundo globalizado e competitivo.
Não há dúvida de que políticas de inclusão social são importantes. Mas devemos levar em conta que as universidades e as unidades que as compõem são diferentes em sua vocação. Em linhas gerais, temos as instituições técnicas, as corporativas, as abertas, as de pesquisa e as de formação.
No caso das universidades de formação, cujo foco é a graduação, a proposta de ampliação das cotas de acesso para 50% das vagas, com a criação paralela de cursos suplementares para melhorar a qualificação dos ingressantes, poderá se mostrar viável, uma vez que os recursos destinados a esses centros já são prioritariamente investidos na graduação.
No entanto, para as universidades de pesquisa, também conhecidas como de classe mundial, a situação é outra. Por serem instituições acadêmicas complexas, que geram grande parte da informação científica e alimentam o desenvolvimento de uma nação através da pesquisa de ponta, são estratégicas para o Estado e minoria dentro do quadro universitário.
Para alcançar o justo reconhecimento, necessitam de corpo docente altamente qualificado, de financiamento público e privado, de ampla autonomia nas suas questões acadêmicas e gerenciais e de um corpo discente apto.
A concentração de talentos tanto no corpo docente quanto discente é um dos ingredientes mais importantes de uma universidade de classe mundial. No Brasil, algumas universidades caminham para se enquadrar nessa categoria, como a Universidade de São Paulo, que já figura entre as cem melhores do mundo em alguns rankings, atingindo o seleto grupo das 50 melhores em determinadas áreas do conhecimento.
Nesse sentido, acreditamos que a nova política tenha um impacto negativo na qualidade dos alunos selecionados, forçando as instituições a uma mudança no seu foco principal, com a destinação de recursos e esforços para absorver estudantes ainda necessitando de reforço de conhecimento e habilidades. Os efeitos negativos serão sentidos após alguns anos, podendo acarretar prejuízos irreparáveis.
Atualmente, a porcentagem de matrículas dos oriundos da rede pública é diferente nas três universidades. Em 2012, a USP recebeu 3.048 alunos oriundos da rede pública, a Universidade Estadual Paulista (Unesp), 2.843 e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), 1.088. O número ainda varia de curso para curso. No caso da USP, em medicina, direito, odontologia, engenharia, arquitetura, jornalismo e audiovisual, a porcentagem desce a valores inferiores a 20%.
Paradoxalmente, existem cursos superiores tão precários que um terço deles foi reprovado pelo Ministério da Educação (MEC) e, portanto, não estaria teoricamente capacitado para atender a demanda de jovens que buscam uma formação universitária.
O ponto de partida para resolver o paradoxo é o investimento forte nos estágios iniciais do ensino público e nas universidades de formação. A flexibilização do acesso por parcela de cotas de acordo com sua missão, classificação e identidade institucional reforçaria essa mudança.
Com isso, teríamos a integração da excelência com diversidade, efetivando a inclusão social com que todos sonhamos, permitindo às universidades que estão se dedicando a ser de classe mundial obter essa conquista, tornando-se cada vez mais indispensáveis e estratégicas para o desenvolvimento do país.

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