quinta-feira, 14 de março de 2013

Pasquale Cipro Neto

folha de são paulo

"O Estado fale"
E como é que se chega à conclusão de que um verbo é defectivo? Muita gente acha que a coisa já vem pronta
NA SEMANA passada, o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, disse algo como "O Estado fale", referindo-se à diminuição da fatia de tributos que o Estado por ele comandado receberá com a nova lei dos royalties da produção do petróleo.
Não foram poucos os leitores que me escreveram para perguntar se é o Estado "fale" mesmo. Como parece óbvio, o governador conjugou ou tentou conjugar o verbo "falir" na terceira pessoa do singular do presente do indicativo. Entramos num território delicadíssimo, caro leitor, o dos verbos defectivos.
É defectivo o verbo que não apresenta todas as formas. Como é a primeira pessoa do singular do presente do indicativo de "abolir"? Será "eu abolo"? Ou será "eu abulo"?
Nem "abolo" nem "abulo". O presente do indicativo desse verbo começa na segunda pessoa do singular: "tu aboles, ele abole, nós abolimos, vós abolis, eles abolem". Como lhe falta a primeira pessoa do singular do presente do indicativo, falta-lhe todo o presente do subjuntivo, que, como se sabe, vem justamente da primeira do singular do presente do indicativo.
Moral da história: se você tivesse de preencher com uma forma do verbo "abolir" a lacuna de "Eles querem que a presidente ___ essa exigência", o que você faria? Não faria. A solução é recorrer a um verbo do mesmo campo semântico ("extinguir", "revogar", "eliminar", "anular"): "Eles querem que a presidente extinga (ou 'revogue', 'elimine', 'anule') essa exigência".
E como é que se chega à conclusão de que um verbo é defectivo? Eis o grande nó. Muita gente (a maioria, suponho) acha que a coisa já vem pronta, como se um general da língua dissesse o que "pode" e o que "não pode", o que se conjuga e o que não se conjuga. Não é assim. Como bem se sabe, língua é essencialmente uma questão de uso. Quando se trata do registro culto da língua, por exemplo, o que se faz é verificar a incidência nesse registro de determinados termos, flexões etc.
É incontestável, por exemplo, a incidência zero de formas como "abulo" ou "abolo", o que nos permite afirmar com total tranquilidade que no atual estágio da língua culta o verbo "abolir" é defectivo. Talvez não se possa dizer o mesmo (incidência zero) de "falir", já que em alguns pronunciamentos orais volta e meia se empregam formas como "eu falo" e "ele/a fale", por exemplo, que não se registram na língua escrita formal culta.
Moral da história: formas como "O Estado fale" ainda estão longe do registro formal culto da língua.
Aproveito para lembrar que verbos como "explodir" e "adequar", entre outros, que tradicionalmente são dados como defectivos pelos dicionários e gramáticas, modernamente vêm apresentando conjugação completa, muitas vezes marcada por instabilidade de formas. Na sua tabela de conjugação, o "Houaiss" dá "explodir" como completo e ainda registra a sua abundância na primeira do singular do presente do indicativo ("expludo" e "explodo") e do presente do subjuntivo ("expluda" e "exploda").
No verbete em si, no entanto, o dicionário faz esta observação: "Geralmente considerado defectivo, não teria as formas...". Esse "não teria" mostra bem como a questão é delicada. No verbete "verbo", ao explicar a expressão "verbo defectivo", o mesmo dicionário dá como exemplo justamente o verbo "explodir"...
Difícil, não? Bem, cabe-me informar aos que vão prestar concursos públicos que as bancas que elaboram as provas costumam ser tradicionalistas. Para elas, "explodir", entre outros, é defectivo e pronto. É isso.

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