quinta-feira, 2 de maio de 2013

LETICIA WIERZCHOWSKI - A Vila Adriana e o missal da minha avó

Zero Hora - 02/05/2013

Tenho grande respeito por objetos. Coisas pequenas, aparentemente desimportantes, um dia podem evocar todo o contexto de um período da nossa vida. Por isso, guardo muita coisa – papéis, fotografias, desenhos infantis, dentes de leite, a primeira meia, o minúsculo cardigã que teci por sobre a barriga enorme, azul da cor do céu. Guardo conchas e guardo bilhetes.

Dos arredores da Vila Adriana, uma vez eu trouxe uns pedregulhos que tenho numa caixinha. Sobre a minha mesa de trabalho, está o antigo livro de orações da minha avó Anna, com sua capa de couro negro e os desenhos em dourado – às vezes, passo os dedos pelas páginas comidas pelos cupins, amareladas de tempo, as frases escritas em polonês e incompreensíveis para mim, e fico pensando nas horas em que a avó com este livro rezou, no que pediu e no que agradeceu; e então me sinto inexplicavelmente perto dela, como me sinto perto do meu avô ao folhear seus antigos documentos – fotos, recibos, suvenir da II Guerra, as suas medalhas sobre o veludo.

Coisas... Dou valor a elas, mas não esse valor óbvio, monetário – penso-as como marcas de outrem, como recordações de um certo alguém que por aqui passou e ansiou, sofreu e amou. Por isso, nunca menosprezo uma peça de tricô, um bordado, um tapete. Coisas feitas à mão são as depositárias do tempo de uma pessoa – os pensamentos de quem as fez ponto por ponto, de uma forma ou de outra, se gravam entre as laçadas, nos volteios da agulha...

Por isso, gosto de bordar para os recém-nascidos uma coisinha qualquer, flor ou palavra, bicho ou árvore, gosto de enfiar a agulha no pano, de deixar a pegada do fio, e atrás dela o meu ensejo, o bom pensamento que eu dedico àquela criança, que seja feliz nesta vida – todo bordado é uma forma de oração.

Não sei por que me peguei pensando nisso hoje, nas coisas que herdamos e nas coisas que deixamos por aqui. Talvez porque vi o pingente da minha avó na gaveta de joias. O pingente filigranado, com o seu pequeno rubi – quantas vezes esse pingente arfou sobre o colo branco e morno da avó? Eu só o uso em ocasiões especiais, como se convidasse Anna a ir comigo, quando quero comemorar ou preciso da sua ajuda.

E lá vem Sophia de Mello Breyner na minha cabeça – ela, que também amava a Vila Adriana, e que escreveu este poema de igual nome: “...tempo da fina areia agudamente medido, os séculos derrubaram estátuas e paredes, eu destruída serei por breves anos. Mas de repente recupero a antiga divindade entre as colunas.” Porque, sim, as coisas que fizemos e tocamos evocam um pouco de nós.

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