quinta-feira, 2 de maio de 2013

MARINA COLASANTI » Amor de cães e humanos

Não ganhei nenhum Nobel, mas sempre acreditei no entendimento dos cães 


Estado de Minas: 02/05/2013 

Estava no meio de uma conferência, quando percebi de repente, ao fundo, um cachorro. Nem estava no chão, nem sentado na poltrona tomando notas. Comportadíssimo no colo do dono, prestava atenção. Ali, pensei, estava alguém com quem eu teria muito a aprender.
Tenho sempre a sensação de que aprendo mais com os animais do que eles comigo. Comigo podem aprender aquela disciplina humana que só a nós interessa, podem aprender a comer uma ração em tudo inferior à carne ou à grama que gostariam de comer, podem aprender que é melhor submeter-se ao banho do que resistir a ele. Não aprendem o amor pela música, porque já o têm, mesmo sem nomear as notas. Não aprendem as delícias da gastronomia, porque não lhes é permitida. Não aprendem a gostar de museus, porque o ingresso lhes é vetado.

Minha amiga colombiana tem um cachorro chamado Colapso. É, mais que um nome, uma carta de apresentação. Colapso é um pastor ovelheiro inglês, sem ovelhas e sem aqueles verdes pastos onde as ovelhas tentam se perder sem que os colapsos deixem. É um tapete peludo com patas. Um tapete grande e muito peludo. Colapso mora num apartamento moderníssimo, triplex. As escadas são estreitas para a mole da Colapso, e quando ele sobe em grande velocidade – não creio que seja capaz de fazê-lo devagar – seu corpo se torce ocupando todo o espaço entre parede e corrimão, como a água toma o espaço do copo que a contém. Àquela figurona forte e surpreendente, basta dizer “cachorro legal”, para que se achegue e encoste a cabeça, em busca, ou em oferecimento, de carinho. Alisando-o à procura dos olhos submersos no pelo, desejei muito ver Colapso entre ovelhas, exercendo a antiga sabedoria da sua raça.

Disse sabedoria, não disse instinto. Pergunte algo sobre inteligência canina a Umberto Eco, e ele rebaterá com uma saraivada de nomes latinos, sábios da mais alta competência que já antes de Cristo consideravam os cães capazes de raciocínio lógico. Plutarco foi além, e em seu livro sobre a astúcia dos animais disse que realmente o raciocínio deles não é perfeito, mas que essa mesma imperfeição pode ser constatada em muitos seres humanos.

Traduzi uma vez um livro de Konrad Lorenz. Taí um homem que entendia de animais, e sobretudo de cachorros. Entendia tanto, que fundou uma ciência, a etologia, só para estudar o seu comportamento e a sua adaptação aos humanos e ao meio ambiente. E ganhou um Nobel por isso. Lorenz afirma que, embora sem falar nossa língua, os cães  entendem muito mais do que pensamos. Não se trata de entender só pela entonação. Eles distinguem palavras e nomes próprios pronunciados exatamente no mesmo tom. E mais, segundo Lorenz, um cão inteligente, que tenha uma relação afetiva intensa com o dono, é capaz de entender frases inteiras.

Não ganhei nenhum Nobel, mas sempre acreditei no entendimento dos cães. A minha interrogação a seu respeito é outra, e não desprovida de angústia. O que pensam? Olho minha cachorrinha e me pergunto em que parte profunda de seu sentimento estão gravadas as florestas do Yorkshire de onde vieram seus antepassados. Aliso Colapso e penso que talvez soubesse reconhecer ovelhas, se apenas as visse. Eles me olham sem falar e diante desse olhar me sinto incompleta como os humanos de Plutarco.

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