quinta-feira, 23 de maio de 2013

Marina Colasanti-De sangue e máquina‏


Estado de Minas: 23/05/2013 


Não vi o vídeo – e agradeço ter escapado desta –, mas vi as fotos do rebelde sírio Khalid al-Hamad, nome de guerra Abu Sakkar, arrancando e mordendo o coração ainda quente do inimigo morto.

Não se trata de inovação e faltou polimento. Corações foram melhor arrancados pelos astecas, com intenções que à época pareciam boas. E corações foram mais bem comidos pelos tupinambás, igualmente movidos por intenções respeitáveis.

Abu Sakkar, que se declarou pronto a enfrentar tribunais, explicou que o gesto canibal devia-se à visão, nos celulares dos inimigos mortos, de fotos e vídeos mostrando como haviam estuprado mulheres, matado crianças, queimado corpos e decepado a mão de um homem vivo. Foi um ato de vingança, barbárie em resposta à barbárie. Uma escalada.

Os corações astecas também eram colhidos em uma escalada, a dos degraus da pirâmide ao alto da qual ficava a pedra do sacrifício. Mas o ritual nascia de um raciocínio lógico aparentemente impecável. Acreditando que para manter em funcionamento a máquina do mundo era necessário fornecer-lhe combustível, os sacerdotes concluíram que o único combustível adequado para essa máquina produtora de sol, calor, luz, água e caça, ou seja, vida, era a força vital entregue por meio de um sacrifício humano.
 
Os tupinambás eram um tanto mais personalistas, comiam os guerreiros inimigos mais valentes – com seus miúdos – para assimilar-lhes o valor. E passá-lo à descendência.

Nenhum escândalo, nenhum arrepio. Todos estavam de acordo, inclusive as vitimas, que consideravam uma honra terem sido escolhidas como acepipe, ou como combustível da vida. O gesto de Abu Sakkar, ao contrário, aconteceu a contrapelo, justo no dia em que o anúncio da clonagem de embriões humanos nos fazia acreditar, pelo menos por alguns momentos, que vivemos em tempos civilizados e modernos. Foi uma espécie de freada de arrumação, que nos devolveu à realidade imutável da nossa ferocidade.

Tupinambás e astecas ritualizavam o gesto de tal maneira que a ferocidade ficava encoberta. Preparavam a vítima – se vítima se pode chamar quem vai sorrindo – cercando-a de cuidados. Primeira providência, uma virgem formosa para alegrar seus últimos dias, ou meses. Uma, para os nossos índios, mas quatro para aquecer o leito do escolhido mexicano mais importante, aquele considerado representação viva – por uns tempos – do deus Texcatlipoca .

Boa comida parece indispensável para adoçar a boca de quem logo deixará de comer para sempre – a tradição perdura na escolha à la carte para a última ceia dos condenados à morte das prisões americanas. Não se trata de cevar, como fazia a bruxa com João e Maria, mas de dar prazer. E faz sentido, já que prazer é vida, e é de vida – não de morte – que tratam esses sacrifícios. Boa comida para eles, então, farta. E música – os mexicanos até aprendiam a tocar flauta.

À vítima de Abu Sakkar – vítima, esta sim, duplamente morta, pelas armas primeiro, pela desonra depois – nada disso foi concedido. Nem mulher, nem comida, nem reverência. E nem consentimento. Seu coração arrancado à revelia não foi oferecido aos deuses, sua coragem de guerreiro não foi transmitida a ninguém. Seu nome permanece ignorado. Não é desse sangue que se alimenta a máquina do mundo. Mas é dele que se envergonha.

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