domingo, 14 de julho de 2013

Agora eu (não) era o herói - Sylvia Colombo

folha de são paulo
Redivisão de papéis na ditadura argentina
SYLVIA COLOMBORESUMO Ex-guerrilheira, antropóloga lança livro em que se distancia de estereótipos maniqueístas associados a atores políticos da última ditadura militar argentina. Sem se furtar à descrição da barbárie de execuções e tortura, obra discorre sobre noções como a "forma divina" que repressores adquiriam aos olhos de alguns presos.
No último dia 17 de maio, numa madrugada fria do outono portenho, o general Jorge Rafael Videla fechou os olhos para sempre. O velho ditador de 87 anos cumpria pena de prisão perpétua por crimes de lesa-humanidade. Sua morada era uma pequena cela na carceragem militar do Campo de Maio. Tratava-se de uma cama pequena, de solteiro, ladeada por uma mesinha sobre a qual repousavam fotos pessoais. O banheiro era compartilhado com outro preso.
Líder da primeira junta de governo militar que assumiu o poder na Argentina após o golpe de 1976, Videla comandou um aparato que, ao cabo de sete anos, mataria cerca de 30 mil pessoas, segundo estimativas de grupos de direitos humanos, e seria responsável pelo desaparecimento de mais de 500 bebês, sequestrados de pais opositores do regime e entregues a famílias de oficiais leais, como bem ilustra o filme "A História Oficial" (1985), de Luis Puenzo.
A morte de Videla encerrou um longo ciclo em que a Argentina julgou e condenou repressores de maneira inédita, principalmente se a base de comparação é o pós-ditadura de outros países da América Latina. Membros do governo kirchnerista, responsável por levar ao banco dos réus mais de 300 agentes do regime, disseram com mal disfarçado orgulho que o general morrera como um criminoso comum, condenado e preso.
Em entrevista ao jornalista Ceferino Reato (publicada no volume "Disposición Final", lançado no ano passado), meses antes de morrer, Videla admitira o que considerava uma "necessidade": o desaparecimento de um grande número de pessoas que se opunham ao projeto de "reorganização nacional" proposto pela junta.
Em 2013, lembram-se os 30 anos do fim desse período obscuro, em que tomou forma uma das ditaduras mais implacáveis do continente. Foi um tempo em que a tortura se difundiu como prática corrente em mais de 300 campos de detenção em todo o país, assim como as execuções e o recurso a requintes de maldade --basta lembrar os "voos da morte", em que prisioneiros políticos eram atirados de aviões sobre o rio da Prata, conforme mostrou o jornalista Horacio Verbitsky em seu clássico "O Voo" (ed. Globo).
Se do ponto de vista da Justiça muito tem sido feito para esclarecer episódios daquele período, do ponto de vista da interpretação histórica os esforços ainda deixam a desejar. A maioria das leituras do passado chega manchada das tintas da polarização da sociedade. Se já era agudo nos anos 1970, esse antagonismo ideológico se encontra consolidado neste começo de século 21 e contamina as reflexões sobre a ditadura.
Nesse cenário, o livro "Poder e Desaparecimento: Os Campos de Concentração na Argentina" [Boitempo, 192 págs., R$ 38], da antropóloga argentina radicada no México Pilar Calveiro, 59, constitui uma exceção. Talvez o maior poeta local vivo, Juan Gelman, que viu um filho desaparecer durante o regime e assina o prefácio à edição brasileira, diz que a interpretação da conterrânea pode ser comparada à obra que o italiano Primo Levi (1919-1987) construiu a partir de sua experiência pessoal em campos de concentração nazistas.
Já para o filósofo argentino Thomas Abraham, o texto de Calveiro permite divisar todos os matizes de que se compõe a distinção entre guerrilheiros e repressores, mostrando que uma tipificação maniqueísta não faz jus aos fatos.
Calveiro conversou por telefone com a Folha desde o México, onde vive há 34 anos e dá aulas na Universidade Autônoma de Puebla.
MONTONERA Seu olhar é mais do que talhado para enquadrar o tema. Integrante da guerrilha esquerdista Montoneros, principal foco de resistência ao regime militar, Calveiro foi sequestrada no dia 7 de maio de 1977. Num primeiro momento, levaram-na à Mansão Seré, centro clandestino de tortura da Aeronáutica. No ano e meio que se seguiu, ela passou pela delegacia de Castelar (centro pertencente à polícia) e pela temida ESMA (Escola Superior Mecânica da Armada), base da Marinha sobre a qual o temido almirante Emilio Massera (1925-1974), um dos três membros da primeira junta militar, tinha forte ascendência.
Como se não bastasse, seu marido foi sequestrado durante uma investida no Brasil da Operação Condor (sistema de repressão e inteligência coordenado entre governos ditatoriais do Cone Sul) e nunca mais apareceu.
"Minha experiência pessoal é fundamental nas escolhas intelectuais que fiz, mas não quis me apoiar somente nela. Usei-a para entender que a memória é formada de várias vozes e que era preciso ouvir mais de uma, não se apoiar na dor pessoal."
A busca dessa polifonia gerou uma reflexão teórica que parte do que a autora e outras testemunhas vivenciaram nos campos de concentração para discutir os conceitos políticos e filosóficos em que a máquina da repressão se ancora.
São colhidos os relatos de Graciela Geuna, prisioneira do centro La Perla (Exército), Martín Gras (ESMA), José Carlos Scarpatti (Campo de Mayo, Exército), Claudio Tamburrini (Mansion Seré) e Ana Maria Careaga (Atlético, Polícia Federal). "Achava importante ter na amostra tanto homens como mulheres, e gente que havia passado por centros administrados por distintas forças. Os que estiveram nos locais comandados pelo Exército passavam pelos interrogatórios mais elaborados, enquanto as torturas na Marinha eram bastante sofisticadas. Fica impossível dizer qual era mais cruel, mas não investigar as distintas formas de aniquilação das pessoas que conformaram a política sistemática do regime", conta Calveiro.
A obra alterna testemunhos de momentos de "prazer" dos prisioneiros, principalmente relacionado às refeições, e de terror, como o experimentado durante as "transferências" (quando presos eram levados de um centro a outro ou simplesmente enviados à morte) e as sessões de tortura.
É aí que o conceito de "desaparecimento" toma vulto no estudo de Calveiro. Desaparecer, em tempos de ditadura, não era simplesmente morrer, mas ter estruturas física e psíquica destruídas por correntes imensas de eletricidade ou outros suplícios. Nos centros de La Perla ou na ESMA, há relatos de presos obrigados a correr vendados ou com capuzes e coleiras. Na Mansão Seré, havia coação a lutas corporais às cegas que não raro resultavam em mortes. Já na delegacia de Castelar, passava-se fome até a capitulação, ao passo que na de Banfield, mulheres davam à luz nuas em meio a insultos e gritos de repressores.
"Não busquei um relato que vitimizasse ou heroicizasse, mas sim que explicasse teoricamente como a repressão se impõe numa sociedade", conta Calveiro.
Para tanto, ela se valeu da formação obtida no México durante seu exílio, a partir de 1979. Foi lá que se formou em ciência política. Depois de "Poder e Desaparecimento", Calveiro seguiu na trilha da violência perpetrada pelo Estado. Seu mais recente trabalho é "Violencias de Estado "" La Guerra Antiterrorista y la Guerra contra el Crimen como Medio de Control Global", de 2012.
Neste e em outros títulos novos de sua lavra, Calveiro volta o foco para os direitos humanos na atualidade. É preciso atentar, diz ela, para as minorias que sofrem discriminação, os mortos pelo crime organizado, o elo entre o narcotráfico e o poder democrático e o uso abusivo da força policial para lidar com crises na sociedade. "É claro que um crime de lesa-humanidade regularizado, como ocorreu nos anos 1970 na Argentina, possui especificidades. É algo muito grave e condenável. Mas, de um modo geral, a questão da violência ilícita ou abusiva cometida pelo Estado está presente em vários países da América Latina hoje. O Brasil não é uma exceção", afirma.
Calveiro menciona como exemplos destacados desse fenômeno o México, onde a guerra entre o governo e os cartéis da droga, iniciada em 2006, já cobrou mais de 60 mil vidas e resultou em mais de 100 mil desaparecimentos, e a Colômbia, onde pactos entre poder e guerrilha permitiram a sobrevivência das Farc, atuando até agora em territórios em que há um vácuo de poder oficial.
HEROÍSMO A antropóloga elogia a ação do Estado argentino na rubrica dos direitos humanos, mas tece críticas ao papel heroico que o kirchnerismo reserva aos que lutaram contra a ditadura nos anos 1970. Para ela, um olhar agudo deveria dispensar categorias épicas.
"A heroicização daquela época é contraproducente e atrapalha a discussão, porque não permite fazer a análise crítica e pensar na responsabilidade dos distintos atores. Não penso na política como forma de exclusão da violência. Creio que nela há sempre um núcleo violento. O que é preciso ver é que lugar esse núcleo violento ocupa, quais são as formas da violência e como operam em relação ao poder instituído", explica.
Em sua obra, Calveiro evita apelos sentimentais. Prefere esmiuçar a linha tênue que geralmente separa os bons dos maus e mostra o que os dois lados da contenda tinham em comum em termos de métodos, crenças e ações. Dá notícia das alianças e formas de convivência entre algozes e vítimas, casos de amor, cumplicidade e vínculos fortes de amizade que se formaram naqueles anos.
Em dado momento, trata a questão da "forma divina" que a personalidade dos repressores ganhava. Se por um lado eles se viam com poderes de matar ou deixar viver suas vítimas, também essas se lembravam com filtros quase divinos de casos em que determinado agente lhes salvara a vida ou as poupara de sofrimentos atrozes.
A estudiosa comenta com otimismo o fato de o Brasil ter instituído recentemente uma Comissão da Verdade para investigar seu passado violento. "Não é tarde, cada sociedade tem seu tempo. Na Argentina, os julgamentos foram possíveis ainda nos anos 1980 por conta do modo como os militares deixaram o poder", avalia.
Derrotados na Guerra das Malvinas (1982), eles saíram do governo desmoralizados, o que abriu espaço para que o líder eleito democraticamente, Raúl Alfonsín, iniciasse o histórico Julgamento das Juntas, levando à cadeia inclusive repressores dos altos escalões.
De lá para cá, a Argentina atravessou várias fases. O próprio Alfonsín, pressionado pelos militares, lançou mão das leis de Ponto Final e Obediência Devida para anular condenações. Seu sucessor, o peronista Carlos Menem, concedeu amplo e generoso indulto, que libertou desde Videla até o líder montonero Mário Firmenich, hoje exilado na Espanha. A anistia foi sustada nas gestões de Néstor e Cristina Kirchner. Estavam dadas as condições para o julgamento amplo de quase todos os envolvidos em crimes do Estado.
"Não basta julgar, é preciso entender, esclarecer. Qualquer sociedade que se comprometa com isso está no caminho certo. É o caso do Brasil agora", conclui Calveiro.
    Livros devolvem ex-tupamaro ao front
    O uruguaio Carlos Liscano esteve preso dos 22 aos 35 anos de idade. No cárcere, foi de guerrilheiro tupamaro a escritor. Ao reconquistar a liberdade, em 1985, considerou-se deslocado num Uruguai democrático que se negava a investigar os crimes da ditadura militar (1973-1985) que o mantivera preso por tanto tempo. Fez então as malas e partiu.
    A primeira opção era Curitiba, mas a ideia não vingou. Optou por um pouso mais distante e embarcou para a Suécia. Ali, inserido numa grande comunidade de exilados das ditaduras latino-americanas, passou mais de dez anos. Só em 1996 sentiu-se à vontade para voltar à terra natal.
    Na última quarta-feira, Liscano recebeu a Folha para uma entrevista no histórico prédio da Biblioteca Nacional, da qual hoje é o diretor.
    "A biblioteca me devolveu à política, mas por uma outra porta. Desde que entrei para o mundo dos livros, em 1981, quando escrevi meu primeiro romance dentro da cadeia, sabia que esse seria o meu foco de atuação no futuro", diz.
    Liscano recorda celas escuras e a peleja com algozes para que lhe fornecessem papel, lápis e luz. Da insistência nasceu seu romance de estreia, "La Mansión del Tirano", que escreveu duas vezes, pois o primeiro manuscrito foi roubado e jogado no lixo pelos militares.
    Trinta e dois anos depois, Liscano se transformou em autor de uma ampla obra de teatro, romances e ensaios sobre os tempos da ditadura. No Brasil, ainda não foi traduzido, mas na França tornou-se um escritor cultuado e tem suas peças encenadas, enquanto no Uruguai seus livros são disputados em sebos. Em Paris, ele acaba de publicar "Memórias de la Guerra Reciente" e "La Impunidad de los Verdugos" (a impunidade dos carrascos, em tradução livre).
    Enquanto isso, a Universidade Federal de Santa Catarina escolheu "El Lector Salteado" (o leitor intermitente, em tradução livre)para lançar Liscano no mercado brasileiro. O próprio esteve no país, em abril passado, para uma tertúlia em torno de livros, política e memória com o escritor argentino Martín Kohan.
    "O trânsito de livros na América Latina é muito falho. Aqui [no Uruguai] é difícil comprar livros colombianos, venezuelanos, mesmo argentinos. Os grandes selos monopolizam contratos por país e atravancam o intercâmbio. Com relação ao Brasil, há ainda o obstáculo da língua", observa.
    Cortês e articulado, Liscano não se acanha em descrever o sofrimento nos anos de cárcere nem escamoteia seu inconformismo em relação a governos que, na visão dele, chancelaram a não investigação dos crimes de Estado --notadamente o de Julio Maria Sanguinetti, presidente entre 1985 e 1990, e novamente entre 1995 e 2000. "Sanguinetti protegeu os militares e encobriu os crimes deles. Foi o principal responsável pela defesa da anistia que faz com que até hoje a sociedade uruguaia não enfrente seu passado."
    ANISTIA Para o escritor, José Pepe Mujica, atual presidente e companheiro de fileiras na guerrilha Tupamaros, também é indolente no que se refere à investigação de episódios de violência ocorridos durante o regime de exceção. A ditadura militar uruguaia é considerada responsável pelo desaparecimento de 174 pessoas.
    Liscano deixa claro que não gosta do papel de oprimido. "Não sou uma vítima. Era guerrilheiro, portanto, responsável pela minha escolha. Há, sim, vítimas. Essas têm de ser compensadas pelos abusos da violência de Estado", diz, antes de comentar, não sem ironia, a incorporação da pauta dos direitos humanos à agenda da esquerda.
    "Não era um assunto que estivesse em seu radar no fim dos anos 1970. O tema foi incorporado ao discurso esquerdista, mas na verdade surgiu nas comunidades no exílio e foi apenas absorvido pelos governantes da democracia. Não se trata de uma solicitação originária da esquerda revolucionária."
    O autor é a favor da investigação dos crimes de Estado, mas reconhece que há pouco a fazer se boa parte da sociedade se opuser à revisão do passado. Atualmente, transcorre no Uruguai, tanto na esfera civil quanto no Congresso, um amplo debate sobre a necessidade de revogar ou não a lei de anistia promulgada em 1986.
    Assim como a antropóloga argentina Pilar Calveiro , Liscano acredita que o discurso dos direitos humanos precisa incluir reprimendas aos crimes cometidos na atualidade. "O que dizer dos mortos nos acidentes de trem na Argentina, por obra do narcotráfico no Brasil, nos tantos meninos e meninas abandonados em toda a América Latina?", provoca.

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