sábado, 27 de julho de 2013

Marca de luxo é ligada a trabalho degradante - Claudia Rolli

folha de são paulo
Le Lis Blanc pagou indenização de R$ 600 mil a bolivianos que confeccionavam roupas em oficinas clandestinas
Dona da marca afirmou que não tem relação com oficinas; empresa também recebeu 24 autos de infração
CLAUDIA ROLLIDE SÃO PAULOUma fiscalização, realizada em junho em São Paulo, encontrou 28 bolivianos em condições de trabalho análogas à escravidão em três oficinas que confeccionavam roupas das grifes Le Lis Blanc e Bo.Bô (Bourgeois e Bohême).
As marcas pertencem à Restoque, grupo com 212 lojas no país e que encerrou o primeiro trimestre com receita líquida de R$ 195 milhões.
À Folha a empresa informou que não tem relação com as oficinas fiscalizadas.
Após blitz feita em 18 de junho em oficinas de costura clandestinas por força-tarefa do Ministério do Trabalho, Ministério Público do Trabalho e Receita Federal, a grife foi autuada e pagou R$ 600 mil de indenização aos estrangeiros, a maior parte em situação irregular no país.
Cada trabalhador recebeu, em média, R$ 21 mil.
A empresa também recebeu 24 autos de infração pelas irregularidades cometidas. Os valores das autuações ainda estão sendo calculados, mas apenas uma das multas (por práticas discriminatórias por origem ou raça) deve chegar a R$ 250 mil.
Trabalho análogo à escravidão é a submissão a condições degradantes, como jornada exaustiva (acima de 12 horas), servidão por dívida e com riscos no ambiente de trabalho.
PRODUÇÃO EXCLUSIVA
Nove de cada dez peças fabricadas pelos 28 trabalhadores resgatados (18 homens e 10 mulheres) eram encomendadas pela Le Lis Blanc por meio de dois fornecedores intermediários: as confecções Pantolex e Recoleta (veja quadro na página 2).
As confecções intermediárias encomendavam as peças às oficinas e depois as entregavam prontas para a grife.
"Ficou evidente a dependência da empresa com o sistema de produção das oficinas e a responsabilidade do grupo", diz o auditor fiscal Luís Alexandre Faria.
Sem carteira assinada, os costureiros faziam jornada de 12 a 14 horas em três oficinas na zona norte de São Paulo.
Eles trabalhavam e moravam nesses estabelecimentos considerados pelos fiscais em condições precárias de segurança e de higiene. Os cômodos eram separados por tapumes, e os banheiros, coletivos.
Alguns deles relataram que tinham de pedir permissão para deixar o local, apesar de terem a chave do portão e não ficarem trancados.
Cadernos de contabilidade mostram indícios de descontos de dívidas contraídas com os gerentes das oficinas para pagar o valor das passagens de vinda da Bolívia.
"Pegamos vales para pagar nossas contas e depois descontam nas faturas", diz M., 37, que trabalha como costureiro há um ano. O salário é de R$ 800 a R$ 900, após o desconto até do wi-fi.
O gerente de uma das oficinas, H., diz que recebeu dos fornecedores de R$ 12 a R$ 15 por calça ou blazer costurado dependendo do grau de dificuldade, mas admite que apenas parte desse valor parte é repassada ao costureiros. "Do valor de cada peça é tirado um terço para quem costura, um terço para o lucro e um terço para despesas de aluguel, água e comida."
    Mais grifes de luxo são alvo de investigação
    Nomes são mantidos em sigilo para não atrapalhar apuração; fiscais dizem que avanço nesse setor surpreende
    Famílias que trabalham nas oficinas estão na mira de criminosos, mas temem denunciar por estarem ilegais
    DE SÃO PAULOPara os fiscais que atuaram no resgaste dos profissionais em oficinas de costura, o que chama atenção é que o trabalho degradante se espalha entre empresas que ocupam espaço no mercado de luxo, e não se concentra apenas nas lojas de "fast fashion" e grande redes de departamento.
    No Brasil, além da Le Lis Blanc, três grifes de luxo já estão na mira de auditores e procuradores do Trabalho. Os nomes são mantidos sob sigilo para não atrapalhar as investigações. Neste ano, outras duas firmaram termo de ajustamento de conduta com o Ministério do Trabalho, Ministério Público do Trabalho para adequar sua produção.
    O uso de mão de obra degradante não é privilégio do Brasil. Recentemente um grupo de grifes estrangeiras admitiu contratar trabalhadores em situação irregular em Bangladesh para terceirizar a produção e cortar custos.
    INTERDIÇÃO
    As oficinas fiscalizadas em junho foram interditadas por falta de segurança nas máquinas de costura (falta de protetores pode causar riscos de acidente de trabalho), ausência de extintores e risco de incêndio nas fiações aparentes.
    Na estimativa da fiscalização, existem entre 8.000 e 10 mil oficinas na região da Grande São Paulo empregando cerca de 80 mil a 100 mil trabalhadores de países sul-americanos nas mesmas condições irregulares constatadas na ação fiscal de junho.
    Segundo a Secretaria Municipal de Direitos Humanos de São Paulo, entre 100 mil e 200 mil bolivianos vivem na capital paulista, sendo somente 60 mil legalizados.
    VIOLÊNCIA
    Além das condições de trabalho, os fiscais dizem que as famílias que trabalham nas oficinas estão submetidas a riscos de violência.
    "Elas são alvos fáceis de criminosos e ladrões. Os migrantes têm grandes dificuldades em abrir conta nos bancos e optam por manter o dinheiro guardado no próprio local de trabalho, por exemplo", diz Renato Bignami, coordenador do Programa de Erradicação do Trabalho Escravo em São Paulo.
    "Já nos deparamos com situações de violência em virtude dessa dificuldade adicional nos próprios resgates", afirma o auditor.
    Dez dias após a fiscalização feita em oficinas de costura da cidade de São Paulo, o menino boliviano Brayan Yanarico Capcha, 5, foi morto com um tiro na cabeça em um assalto à casa da família, em São Mateus, na zona leste da capital.
    A família dele foi assaltada quatro vezes nos seis meses no Brasil, segundo mostrou reportagem da Folha.
    Não há estatísticas da Secretaria de Segurança Pública sobre assaltos à comunidade boliviana. Muitos trabalhadores estão irregulares no país e temem registrar queixa.
    Gerente boliviano de oficina começou como 'piloteiro' de estilista
    folha.com/no1317399
      OUTRO LADO
      Empresas dizem que não sabiam da exploração
      DE SÃO PAULOA Restoque, dona das marcas Le Lis Blanc e BôBo, disse que não tem relacionamento com as empresas citadas na fiscalização do Trabalho e que irá se defender.
      Em nota, a empresa disse que recebeu "em 22 de julho de 2013 autuação do Ministério do Trabalho e Emprego envolvendo empresas que não conhecemos e com as quais não temos relacionamento". Segundo a empresa, a autuação envolve valores entre R$ 50 mil e R$ 150 mil.
      "Cumprimos integralmente a legislação trabalhista nas relações com nossos colaboradores e tomamos os mesmos cuidados com nossos fornecedores", informou a Restoque, acrescentando que, após analisar as autuações, irá apresentar defesa.
      As duas confecções citadas pelo Ministério do Trabalho --Recoleta e Pantolex-- disseram desconhecer a exploração de trabalho escravo nas oficinas subcontratadas.
      Segundo o advogado Alexandre Venturini, que representa as duas marcas, a entrega de parte do serviço a oficinas menores é prática "esporádica" nas confecções.
      "Grande parte da produção é feita internamente e pontualmente são contratadas outras empresas, essas oficinas --que normalmente são compostas por estrangeiros, bolivianos--, para quando não é possível cumprir determinada meta de produção."
      Segundo Venturini, as confecções desconheciam a irregularidade nas oficinas. "Não tinham conhecimento a propósito dessa exploração de trabalho", disse. Os contratos das duas confecções com as oficinas fiscalizadas foram cancelados, afirmou.
      De acordo com o advogado, a Recoleta contratou pela primeira vez a oficina onde os fiscais detectaram a exploração de bolivianos. Já a Pantolex mantinha contratos com as outras duas oficinas em situação irregular havia cerca de um ano, diz. As oficinas não tiveram seus nomes divulgados pelo ministério para evitar a exposição dos trabalhadores bolivianos.

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