sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Interesse na vida íntima de Bishop joga luz sobre obra

folha de são paulo
Coletânea de entrevistas da poeta é lançada; filme sobre seu caso de amor com brasileira estreia hoje
Pesquisador afirma que feminismo e movimento gay ajudaram a divulgar trabalho da escritora
JULIANA GRAGNANIDE SÃO PAULOPoeta, feminista, homossexual e alcoólatra, a americana Elizabeth Bishop (1911-1979) vivia fugindo de rótulos. Desvalorizada em sua própria época, ela, que não acreditava em literatura como instrumento político, acabou tendo sua obra alavancada pelo feminismo e o movimento de afirmação gay.
Essa é a conclusão do pesquisador americano George Monteiro, organizador de "Conversas com Elizabeth" (Autêntica), que chega agora às livrarias. O livro é uma coletânea de entrevistas concedidas pela poeta a veículos brasileiros e estrangeiros.
"O interesse imenso por sua vida pessoal provocou uma releitura póstuma à sua obra", diz Monteiro.
A curiosidade em torno da intimidade de Bishop, que ela pouco revela nas entrevistas, é satisfeita em parte com o filme brasileiro "Flores Raras", que estreia hoje em 200 salas.
O longa retrata a vinda de Bishop ao Brasil em 1951, onde viveu por duas décadas.
A poeta morou no Rio, onde se dividia entre a capital e Petrópolis, e manteve um relacionamento com a urbanista brasileira (nascida em Paris) Lota de Macedo Soares.
"Nunca me senti uma exilada, mas também nunca me senti exatamente em casa", disse a poeta ao "Christian Science Monitor", em 1978.
Essa afirmação sobre o Brasil é menos incisiva que sua opinião mais célebre --de que o país era "um horror", escrita em carta ao poeta americano Robert Lowell, em 1953.
    Atriz que vive poeta teve medo de expor 'alguém tão contida'
    'Gostei do erotismo das cenas, mas não queria que ficassem provocativas', diz a australiana Miranda Otto
    Filme de Barreto mostra alcoolismo de Bishop; diretor diz que foco não é o homossexualismo, mas a história de amor
    DE SÃO PAULODiscreta, a poeta norte-americana Elizabeth Bishop não gostava de falar em público. A autora, que viveu de 1951 até o final da década de 1960 no Brasil, tampouco tinha coragem de recitar seus poemas. Acabou tendo a vida exposta no cinema.
    "Flores Raras", longa do diretor brasileiro Bruno Barreto que estreia hoje, retrata detalhes da vida íntima da poeta, como seu problema com o alcoolismo e seu relacionamento com a urbanista e paisagista brasileira Lota de Macedo Soares (1910-1967), interpretada pela atriz brasileira Glória Pires.
    "Tive medo de expor demais a vida de alguém que era extremamente contida", diz Miranda Otto, atriz australiana que fez o papel de Bishop.
    Segundo Barreto, o filme não é centrado no relacionamento homossexual, mas simplesmente retrata uma história de amor. "O tema das duas mulheres está presente, mas não é a razão de ser da história", diz o diretor.
    "Gostei do erotismo das cenas [entre Bishop e Lota], mas não queria que ficassem provocativas. O relacionamento de Bishop com a poesia era maior que seu relacionamento com Lota", afirma Otto.
    MASCULINA FEMININA
    As cenas de amor e de brigas entre as duas se alternam com momentos que mostram o processo criativo de Bishop e o trabalho de Lota no parque do Flamengo, no Rio. Autodidata, a paisagista ficou conhecida por dirigir os trabalhos de projeção do aterro urbano, o maior do mundo.
    "Lota era uma mulher extremamente masculinizada, mas feminina nos seus gostos. Enquanto trabalhava no aterro do Flamengo, fazia questão de almoçar com talheres de prata e porcelana inglesa", diz Glória Pires.
    Bishop, por sua vez, era mais conhecida pelo perfeccionismo em relação ao seu trabalho. Ela contou, em entrevista à "Paris Review", em 1978, que nunca gostou do poema "O Alce", mesmo tendo levado mais de 20 anos para terminá-lo, em 1976.
    O filme demorou quase isso para sair do papel. Foi em 1997 que a produtora Lucy Barreto, mãe do diretor, comprou os direitos do livro "Flores Raras e Banalíssimas "" A História de Lota de M. Soares e Elizabeth Bishop", de Carmen Lucia Oliveira, no qual o longa é baseado. Lucy chegou a conhecer Bishop e Lota em alguns encontros sociais nos anos 1960.
    O livro só menciona o primeiro encontro entre Bishop e Lota, em 1942, ocorrido em Nova York, quando a paisagista fora à cidade na companhia de Mary Morse.
    O foco é mesmo no relacionamento iniciado dez anos depois, no Brasil, para onde a poeta veio em 1951, disposta a ficar por período curto.
    Em entrevistas, publicadas no livro "Conversas com Elizabeth Bishop", a autora gostava de contar que a sua estada no Rio se prolongara porque ela teve de ser internada em um hospital, em consequência de uma reação alérgica a um caju, cena que está no filme.
    Depois disso, Bishop se envolveu em um triângulo amoroso com Mary Morse e Lota--as duas já moravam juntas em Petrópolis, região serrana do Rio. A casa em que viviam, projetada pelo arquiteto brasileiro Sérgio Bernardes, passou a ser também o lar de Bishop.
    Durante sua estada no Brasil, Bishop chegou a ganhar um Pulitzer com o livro "Norte & Sul - Uma Primavera Fria", em 1956. Quando soube do prêmio, quis compartilhar a notícia, mas Lota havia ido à feira. Procurou alguém para dividir a alegria.
    "Desci a montanha correndo quase um quilômetro até a casa vizinha, mas não tinha ninguém", relatou na entrevista à "Paris Review". No filme, porém, é Lota quem lhe dá a boa notícia.
    Em 1965, Bishop comprou uma casa em Ouro Preto, onde conviveu com Vinicius de Moraes e com a dinamarquesa Lili Correia de Araújo. "Alguma coisa no caráter dessa cidade combina comigo", disse, em 1969, à revista "Visão".
    Mas, em geral, Bishop era uma crítica da desorganização do Brasil. Também dizia não entender o caráter pacato do povo. Em uma cena, ela comenta a passividade diante do golpe militar de 1964.
    Bishop voltou aos EUA onde, em 1967, recebeu uma visita de Lota. Final trágico: a paisagista ingeriu antidepressivos na casa da poeta e morreu.
      CRÍTICA
      Filme é corajoso, mas não tão arrojado como pede a trama
      'FLORES RARAS' SE APOIA NA BRILHANTE INTERPRETAÇÃO DE MIRANDA OTTO, QUE TAMBÉM ESTÁ BELA COMO NUNCA NO CINEMA
      SÉRGIO ALPENDRECOLABORAÇÃO PARA A FOLHA"Flores Raras", longa mais recente de Bruno Barreto, é baseado no romance real entre a arquiteta brasileira Lota de Macedo Soares (Glória Pires) e a poetisa norte-americana Elizabeth Bishop (Miranda Otto). Ambas moraram juntas em Petrópolis, entre as décadas de 1950 e 1960.
      Há um momento que é raro dentro do cinema comercial brasileiro: quando Lota e Elizabeth voltam do passeio de carro no qual se tornaram amantes. No exato instante em que o carro estaciona na entrada da casa de Lota, a câmera faz um recuo inusitado para reenquadrar as duas na parte esquerda da tela, enquanto na parte direita se encontra Mary, companheira de Lota, sentada sozinha num sofá dentro da casa.
      Esse tipo de movimento da câmera destoa da sobriedade que o diretor Bruno Barreto impõe a seu filme, mas ao mesmo tempo instaura um salutar respiro à narrativa, que até então estava a um passo do academicismo. Vemos a tela dividida entre o despertar de um romance e o ocaso de outro.
      Um ocaso que, no entanto, não significa a saída de Mary, pois Lota quer manter as duas por perto. O preço a pagar é a adoção de uma criança, desejo de Mary com o qual Lota nunca havia concordado.
      A tela dividida ainda espelha outras divisões: vemos personagens situadas entre Estados Unidos e Brasil; o compromisso e a liberdade; Petrópolis e a capital do Estado; a língua inglesa e a portuguesa.
      Vemos também uma personagem, Lota, dividida entre o desejo carnal por Elizabeth e a segurança da antiga relação com Mary. Esta é precisamente a mesma situação que vive a personagem do melhor filme de Bruno Barreto, "Dona Flor e Seus Dois Maridos". Ali também vemos uma mulher dividida entre a segurança e a carnalidade.
      "Flores Raras" se apoia na brilhante interpretação de Miranda Otto (que também está bela como nunca antes no cinema) e revela uma certa coragem no retrato do triângulo feminino.
      Infelizmente, essa coragem não se sustenta o filme todo, pois Barreto é limitado pela segurança de um cinema de qualidade, baseado no cálculo e na pompa, sobretudo na segunda metade, justamente quando a história pedia algo mais arrojado, condizente com seu desassossego.
        FLORES RARAS E REAIS
        Filme que chega hoje aos cinemas é inspirado na biografia 'Flores Raras e Banalíssimas', de Carmen L. Oliveira (Rocco, 224 págs., R$ 41,50)
        ELIZABETH BISHOP
        Nascida na cidade de Worcester, no Estado americano de Massachusetts, a poeta foi criada pela tia e pelos avós. Estudou literatura inglesa na Vassar College, em Nova York. Morou no Brasil com a urbanista Lota de Macedo Soares de 1951 ao final da década de 1960. Ganhou o prêmio Pulitzer (1956) e o National Book Award (1970). Lecionou em universidades americanas como a Harvard
        CARLOS LACERDA
        O jornalista e político foi membro da União Democrática Nacional (UDN) e, de 1960 a 1965, governador do então Estado da Guanabara. Convidou sua amiga Lota para dirigir o projeto do Aterro do Flamengo. No filme, Lacerda lida diretamente com a urbanista. Na vida real, quem conversava com ela sobre o projeto era o vice-governador, Raphael de Almeida Magalhães
        LOTA DE MACEDO SOARES
        Nascida em Paris, Maria Carlota Costallat de Macedo Soares era chamada de "Lota". Autodidata em urbanismo e paisagismo, ficou conhecida por dirigir o projeto do aterro do Flamengo, no Rio. Manteve um relacionamento com a americana Mary Morse e, depois, com a poeta Elizabeth Bishop. Com depressão e já separada de Bishop, foi visitá-la em 1967 em Nova York. Morreu depois de ingerir antidepressivos
        MARY MORSE
        Dançarina, Morse conheceu a urbanista Lota de Macedo Soares em 1941, quando voltava de uma turnê, em um navio que ia de Santos a Nova York. Em 1942, Mary decidiu voltar ao Brasil, onde passou a viver com Lota, com quem manteve um relacionamento. Em seu testamento, a urbanista deixou a casa e o terreno de Petrópolis para Morse
          Reedição de prosa será acrescida de inéditos
          Depois dos poemas, novo volume trará cartas, contos e reportagem
          Para o poeta Lloyd Scwhartz, Bishop 'tem um jeito de conversar com o leitor, como se pensasse alto'
          RAQUEL COZERCOLUNISTA DA FOLHANo Brasil, a vida tumultuada de Elizabeth Bishop é tão mais comentada que sua obra que, até o ano passado, alguém poderia vasculhar sua intimidade nas formas de biografia, romance e peça, mas não desfrutar seus textos, havia anos fora de catálogo.
          O descompasso entre essas pontas foi atenuado com "Poemas Escolhidos" (Companhia das Letras, 2012), incluindo inéditos e reeditados na tradução de Paulo Henriques Britto, e ficará mais bem remediado no início de 2014, quando sua prosa, também acrescida de inéditos, voltará a figurar nas lojas do país.
          A edição que Britto acaba de entregar à casa paulistana se baseia nos textos de "Prose" (2011), lançado nos EUA pelo poeta Lloyd Schwartz.
          Um ponto alto é uma reportagem de 1958, feita para a "New Yorker" e nunca publicada pela revista, a partir da visita com o escritor Aldous Huxley a uma Brasília em construção e à Amazônia. O texto veio à tona em 2006, mas ainda não saiu em português.
          O livro terá ainda contos, cartas e um trecho de "Brazil", que a Time-Life lançou nos anos 1960 com alterações odiadas pela poeta --Lloyd resgatou o original, bem mais ácido (à moda Bishop) do que aquele que ficou conhecido.
          Embora nunca tenha lhe faltado admiração no meio literário, Bishop não viveu para testemunhar o reconhecimento amplo do público. "Ela ficaria horrorizada se soubesse que essa recepção foi favorecida pelo olhar para a questão da mulher e da homossexualidade", diz Britto.
          Lloyd Schwartz lembra ocasião em que, após se recusar a integrar antologia de poetas mulheres, Bishop ouviu que isso lhe angariaria leitores, ao que retrucou: "Bem, vou ter de me conformar com os leitores que tenho".
          "Ela via com ironia o movimento feminista, embora se dissesse feminista. Não queria ser vista como poeta mulher, mas como poeta."
          Para Schwartz, a grandeza da produção de Bishop está na capacidade de "ver o mundo com telescópio e microscópio ao mesmo tempo".
          "Ela tem um jeito de conversar com o leitor, como se pensasse alto. Um modo de falar é assim; quer dizer, não, não é bem isso'", diz ele.
          GUINADA
          Essa guinada de opiniões no corpo dos poemas foi algo que Eliana Ávila, professora da Universidade Federal de Santa Catarina, estudou. "Bishop desafiou os próprios valores nos textos", diz Ávila.
          Um exemplo está em "Manuelzinho", poema sobre um meeiro. "A narradora se irrita por ele não querer melhorar de vida. Aos poucos, de forma implícita, faz com que seja impossível diminuí-lo."
          As tensões culturais expostas no poema terminam em condescendência: "Seu tonto, seu incapaz,/ gosto de você demais,/ eu acho. Mas isso é gostar?/ Tiro o chapéu --metafórico/ e sem tinta-- pra você./ De novo, prometo tentar."

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