sábado, 17 de novembro de 2012

Difícil arte de escolher - João Paulo‏

Estado de Minas: 17/11/2012

Quem não se lembra de uma antologia de contos que habitou a infância? Ou dos volumes com seleção de poemas que eram decorados, muitas vezes sem que o sentido fosse decifrado de todo? Caminho quase natural para introduzir os jovens na leitura, as antologias são livros especiais: com sede de universalidade, se alimentam sempre de uma intenção particular. Pode ser a obra de um artista, um gênero literário e até mesmo um tema, como as histórias de piratas, de terror ou de sexo. Os livros nos davam a impressão de que uma porta estava sendo aberta. 

Pode parecer fácil organizar uma antologia, já que se trata de uma reunião de textos a partir de um elemento unificador. Bastaria juntar contos, trechos de romances ou poemas, deixando para o leitor o trabalho mais difícil, que é perceber o fio que une o sentido, que dá substância a uma ideia, que sintetiza o estilo de um autor. Muitas vezes é essa facilidade vicária que inspira as más antologias. Mas a exigência do leitor tem alinhado o mercado. Alguns exemplos recentes mostram como uma boa coletânea vale muitas vezes por uma obra original.

Poemas escolhidos de Elizabeth Bishop, com seleção, tradução e textos introdutórios de Paulo Henriques Britto (Editora Companhia das Letras, 410 páginas) é um volume precioso. A poesia de Elizabeth Bishop (1911-1979) não é fácil em seu sofisticado trato com a língua inglesa, e sua vida, muitas vezes, ficou resumida para os brasileiros à sua estada no país e ao relacionamento com a arquiteta Maria Carlota Costellat Macedo Soares, mais conhecida como Lota. 

O tradutor Paulo Henriques Britto tinha, assim, um dupla tarefa: verter as poesias mais representativas de Bishop e apresentar aos leitores uma leitura de sua obra e das passagens mais significativas de sua vida. O livro cobre praticamente toda a trajetória poética da escritora, com poemas dos livros Norte e Sul, Uma primavera fria, Questões de viagem, Outros lugares, Obras dispersas, Geografia III, Poemas novos e dispersos e Poemas dispersos. A edição é bilingue, o que permite acompanhar as soluções encontradas pelo tradutor, e com notas sempre elucidativas e sem afetação.

Completam a edição dois ensaios de Paulo Henriques Britto. O primeiro, “Elizabeth Bishop: os rigores do afeto”, é uma leitura erudita e compreensiva da obra da poeta, com interpretação em profundidade de alguns poemas marcantes da obra bishopiana, com análises sobre elementos técnicos da poética, integrados ao contexto histórico da realidade norte-americana e brasileira. 

Paulo Henriques não se afasta das dificuldades estuda os poemas surrealistas de Elizabeth Bishop, entre eles o conhecido “The man-moth”. Entre os aspectos analisados estão a relação dos poemas com a materialidade do mundo, com a viagem subjetiva da escritora, com a presença da corporalidade em sua lírica. O tradutor insere ainda a obra de Bishop na tradição do alto modernismo, em diálogo com outros poetas contemporâneos, como Pound, Stevens, Elliot e Marianne Moore. 

A habilidade em interligar de forma arguta a vida e a obra da escritora faz lembrar outros bons antologistas de poesia no Brasil, como José Paulo Paes e os irmãos Campos, que sempre fizeram a arte de apresentar novos escritores de outras culturas uma tarefa de civilização. Entrar em contato com a boa literatura mundial é uma operação ao mesmo tempo estética e política. 

O segundo ensaio de Britto que integra a antologia é “Bishop no Brasil”. Trata-se de melhor apresentação da relação entre a escritora e o país, feita de forma sucinta e exata, com informações pessoais, depoimentos de contemporâneos, análise do contexto brasileiro (inclusive da ditadura civil-militar instaurada em 1964) e acerca da relação de amor e estranhamento entre Elizabeth Bishop e o Brasil, sobretudo com o jeito desleixado dos brasileiros, algo a que ela nunca se acostumou. 

Com a ligação de Bishop com Ouro Preto o ensaio vai se aproximando do fim. A vida da poeta começa a mostrar sinais de instabilidade e sofrimento, coroados com o suicídio de Lota. A poeta volta ao seu país e organiza uma antologia sobre a poesia brasileira. Seus poemas do período são uma súmula da dubiedade de sua relação com o Brasil. Ela sempre se sentiu uma exilada entre nós.

Prosa e poesia 

Outras antologias que merecem atenção são A poesia das coisas simples (Editora Companhia das Letras, 254 páginas) que reúne crônicas de Moacyr Scliar (1937-2011), organizada por Regina Zilberman; e Antologia poética de Fernando Pessoa (Editora Casa da Palavra, 332 páginas), com organização, apresentação e ensaios de Cleonice Berardinelli.

O livro sobre Moacyr Scliar faz justiça a um dos mais importantes escritores brasileiros do século 20 em um gênero no qual ele não costuma ser reconhecido. Mestre da narrativa de invenção, em romances e contos, Scliar ficou marcado por sua imaginação fantástica e pelo apego às formas ligadas à tradição das narrativa judaicas. Tudo isso parecia encaminhá-lo para um terreno que o afastava do cotidiano, como se fosse um escritor atado apenas à ficção e ao passado.

Mas Scliar foi um escritor completo. Médico de formação e profissão, exerceu quase todos os gêneros literários, com exceção da poesia. Escreveu para jovens, romances históricos, ensaios, contos, ficção fantástica, narrativa realista e textos para a imprensa. Sua prosa sempre límpida e sua sabedoria humilde davam conta de todo tipo de assunto, da medicina à psicologia. Compôs, em seu estilo sempre translúcido, uma obra de mais de 70 volumes.

O escritor foi também um cronista contumaz por mais de 40 anos. Regina Zilberman propõe em A poesia das coisas simples uma divisão em três grandes blocos. O primeiro, “Leituras, livros e literatura” é um exercício em torno da própria arte literária. Scliar dialoga com o leitor sobre literatura engajada, livros de cabeceira, histórias de guerra, tolerância, carnaval, Bíblia e política. A segunda seção, “Pessoas e personagens”, conversa sobre gente como Woody Allen, Paulo Coelho, George Orwell, Clarice Lispector, Olga Benário e até “o primeiro hippie”. A terceira parte reúne textos com a chancela de “Outras histórias”, e trata de temas variados, da culinária à política internacional. 

Como todo bom judeu, Scliar acha graça do mundo porque sabe rir de si mesmo. Suas crônicas, mesmo as mais graves, carregam esse saudável hábito da desimportância do ego frente ao mundo. Por isso ele era capaz de ver a poesia das coisas simples. E talvez por isso suas crônicas comecem a ser valorizadas ao lado dos melhores cultores do mais brasileiro dos gêneros literários. A antologia de Regina Zilberman é um passo nesse caminho

Por fim, é importante destacar a antologia organizada por Cleonice Berardinelli sobre a obra de Fernando Pessoa. Uma das maiores conhecedoras da obra do poeta português, Cleonice além de apresenta uma seleção impecável de toda a trajetória do escritor, ajuda a fixar o texto com seu conhecimento filológico e brinda o leitor com um conjunto de oito ensaios: “Fernando Pessoa: o eu profundo”, Fernando Pessoa: os vários eus”, “A presença da ausência em Fernando Pessoa”, “Pessoa e seus fantasmas”, “A polissêmica felicidade pessoana”, “O discurso inovador de Caeiro e Campos”, “Mestre, meu mestre querido” e “Recuperando um olhar sobre pessoa”. 

Em três volumes, uma pequena estante que recupera a importância das antologias. 


jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br

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