quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

CIÊNCIA » Feminismo inca - Marcela Ulhoa‏

Historiadora da UnB faz revisão de documentos e defende a tese de que mulheres tinham papel relevante na antiga civilização andina, ocupando cargos importantes 

Marcela Ulhoa
Estado de Minas: 30/01/2013 

Brasília – A história da civilização inca, com seus grandes feitos e desventuras, é marcada por figuras masculinas. De Manco Cápac, filho do deus Inti Sol e ligado à lenda de origem do império, a Atahualpa, o último imperador, os nomes que mais têm destaque são os de poderosos guerreiros, governantes e sacerdotes. Apesar de a cultura incaica não ter deixado relato escrito a respeito de seu passado, os colonizadores europeus que chegaram ao território andino no século 16 se apressaram em registrar, com tinta e papel, o olhar deles sobre aquele povo. Para tanto, pegaram emprestados os relatos orais e o vasto material visual produzidos pelos antigos habitantes da costa oeste da América do Sul, e contaram uma história – assim como fizeram com a do Velho Mundo – protagonizada por homens.

Depois de quase 500 anos da extinção do Tawantinsuyo, nome dado pelos incas aos seus domínios, essa perspectiva histórica começa a ser contestada. A partir de uma releitura das crônicas dos conquistadores dos séculos 16 e 17, de interpretações de vestígios arqueológicos e da análise da literatura contemporânea sobre a civilização andina, a professora do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB) Susane Rodrigues de Oliveira rompe o silêncio imposto às figuras femininas do império inca e traça uma nova representação dessas mulheres. “Quando os espanhóis chegaram ao Tawantinsuyo, por volta de 1532, eles se depararam com mulheres guerreiras, conquistadoras, donas de terra, engenheiras agrônomas, curandeiras. Algo inimaginável para a Espanha dos séculos 16 e 17”, defende Susane. 

 No livro Por uma história do possível: representações das mulheres incas nas crônicas e na historiografia (Paco Editorial,2012), recentemente lançado, a historiadora retoma os exemplos de figuras como as huacas, adoradas e reverenciadas como seres sagrados, e ressalta a importância política de governadoras como as capullas, curacas e coyas. Essas últimas, ressalta Susane, tinham laços sanguíneos com os incas (imperadores) e governavam o território ao lado deles. Nos mitos da expansão do Tawantinsuyo, havia destaque para a curaca Chañan Cusi Coca, guerreira sacralizada no imaginário indígena colonial por proporcionar uma das vitórias mais importantes para o estabelecimento do poderio incaico sobre os Andes. Mas, se os vestígios revelam a força do feminino, por que essas mulheres não estão nos livros didáticos e nos discursos históricos?

Distorções Para fazer uma análise do discurso e do imaginário sobre as mulheres incas, Susane Oliveira buscou em bibliotecas peruanas e brasileiras crônicas produzidas por soldados, cosmógrafos, navegadores, jesuítas e outros atores envolvidos no processo de colonização. Alguns dos autores estudados foram Garcilaso de la Vega, Pedro Cieza de León e Jose de Acosta. “Elas foram descritas pelos cronistas como bruxas e feiticeiras. Fiz uma análise de sua inferiorização como um discurso de poder, colonialista, que queria tirar a mulher de seu lugar de autoridade para instalar uma sociedade colonial nos Andes”, explica. 

A Mama Huaco, por exemplo, apesar de ser uma personagem importante, uma das fundadoras do poderio incaico, foi descrita como uma bruxa perversa que arrancava os bebês dos ventres das mães, decepava cabeças e contaminava a água. “Eles diziam que ela só poderia ser uma mulher em conluio com o demônio. Busquei contextualizar historicamente essa imagem e procurei no imaginário cristão o que significava esse ser diferente e abominável. Descobri que a figura de uma mulher forte punha em jogo toda a instalação de uma sociedade masculina, colonialista e androcêntrica na região andina”, conclui. 

Segundo ela, apesar de as crônicas apresentarem um ponto de vista deturpado, elas abrem brechas para outras significações. “Há momentos de silêncio que dizem muito. Às vezes, os escritores começam a falar de um grupo de mulheres guerreiras, mas logo vem um ponto final. Não continuam o relato.” Apesar de serem documentos fundamentais, Susane Oliveira lembra que as crônicas espanholas representam uma visão ocidental do mundo andino. Na tentativa de preencher essa lacuna, uma de suas principais fontes foi o material escrito por um indígena peruano cristianizado conhecido como Felipe Guaman Poma de Ayala. Por seu relato, cada uma das quatro regiões do Tawantinsuyo possuía uma senhora cápac, que podia dividir o poder com um senhor cápac. 

Para Cristiana Bertazoni, coordenadora do Centro de Estudos Mesoamericanos e Andinos da Universidade de São Paulo (Cema/USP), esse outro tipo de interlocutor tem o potencial de oferecer uma visão menos filtrada e muito mais próxima do universo Inca. Cristiana cita o Manuscrito de Huarochirí, de autoria anônima, que permite observar questões de gênero mesmo antes dos incas. Segundo o documento, os homens teriam sido criados pela divindade masculina Paria Caca, e as mulheres pela divindade feminina Chaupi Ñamca. “Essa característica de equilíbrio entre divindades femininas e masculinas revela a complementaridade e a relação de interdependência de gêneros”, ressalta.

Além da história escrita, Susane Oliveira diz que a arqueologia traz indícios materiais da presença de governadoras na região antes mesmo dos incas. É o caso da Múmia Tatuada, cujos restos mortais, envoltos em tecido de algodão, foram descobertos em 2005 em um sítio cerimonial chamado El Brujo, no litoral norte do Peru. Os restos mortais, de 1,6 mil anos, intrigaram os arqueólogos por darem a entender que são de uma rainha guerreira dos mochicas.

Possibilidades De acordo com Eduardo Natalino, um dos fundadores do Cema/USP, é difícil falar sobre o papel da mulher na civilização inca de forma geral. “Os relatos espanhóis dão visibilidade à nobreza. As esposas dos incas podiam governar. Mas e o restante da sociedade, como funcionava?”, questiona. O pesquisador reforça ainda que as narrativas cosmológicas também mostram os princípios de funcionamento de uma sociedade. “Na nossa cosmologia judaico-cristã, a mulher é derivada da costela do homem, e é ela quem o induz ao pecado. Há todo um papel negativo em torno dela”, exemplifica. Nesse aspecto, a inclusão da figura feminina compartilhando a origem do Tawantinsuyo ao lado de um representante masculino pode revelar uma forma diferente de estrutura social, apesar de ser difícil generalizar o poderio das mulheres.

Susane Oliveira lembra a importância de pesquisas como a que fez, que ela chama de “história do possível”. “A contribuição do meu estudo é mostrar outras possibilidades de existência para as mulheres. Se a história sempre mostrar o homem das cavernas arrastando a mulher pelos cabelos, você acaba aceitando que sempre foi assim, que não é possível mudar.” Segundo a historiadora da UnB, uma nova perspectiva sobre o passado pode abrir horizontes para o futuro, reforçando a ideia de que é possível existir uma relação de complementariedade e igualdade, independentemente do gênero.

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