sábado, 26 de janeiro de 2013

O mundo é um porão - João Paulo‏

Estado de Minas - 26/01/2013

Bernardo Bertolucci voltou a filmar jovens depois de Os sonhadores, de 2003. O filme Eu e você, que ainda não estreou no Brasil, é baseado no romance de mesmo nome do italiano Niccolò Ammaniti. O cineasta andou declarando que não seguiu o livro à risca e teve conflitos com o escritor. Nenhuma novidade. Bons escritores e bons diretores dificilmente entram em acordo. A chegada do romance às livrarias brasileiras permite examinar as razões de Ammaniti, até que o filme chegue ao país. Por enquanto, já dá para dizer: a novela é impressionante.

O livro é curto, com poucos personagens e muitos diálogos. A história é também densa e simples. Um jovem levemente desajustado, neurótico e sensível, de 14 anos, ludibria a mãe e, em vez de ir esquiar com amigos, se mete no porão do edifício onde mora, com comida, música, filmes e jogos que lhe garantirão uma semana de solidão. Lorenzo, este é nome do adolescente, não se dá bem com as pessoas e não se pode tirar a razão do rapaz, já que todos os jovens que o cercam parecem ser mesmo imbecisa como sabem ser os jovens quando se arrogam a adultos. 

Sua paz vai ser conspurcada pela chegada da meia-irmã, Olivia, uma jovem problemática, de 19 anos, em plena crise de abstinência de drogas. Olivia pouco conhece Lorenzo, tem péssimas relações com o pai e sua presença parece emitir um duplo sinal: um pedido de socorro e um alerta de perigo. Para manter a mentira que havia inventado, Lorenzo precisa se associar a Olivia. É desse pacto em torno da falsidade que surge a ligação entre os jovens.

Profundamente iguais na falta de ancoragem no mundo e diferentes na forma que inventaram para suportar a existência, os jovens se aproximam. A princípio, a inteligência e segurança do rapaz parecem colocá-lo em vantagem em relação à irmã, que expressa um sofrimento físico e moral quase insuportável. Lorenzo, em sua juventude, precisa amadurecer e perder o orgulho para levar adiante seu propósito de salvar Olivia.

A simplicidade do enredo, que parece se armar sobre uma estrutura dramática (que se assemelha mais com teatro do que com o cinema), não esconde no entanto a profundidade alcançada no desenho dos personagens. Quase sem descrições, apenas com o recurso ao diálogo, Ammaniti cria caracteres não apenas verossímeis, mas profundamente humanos e comoventes. 

História de formação de almas atormentadas, Eu e você se concentra no momento quase intangível da passagem da juventude para a maturidade. O que parece, no primeiro momento, uma mera recusa do mundo adulto, atitude típica dos adolescentes, se revela no decorrer da narrativa como uma crítica iracunda às convenções familiares e sociais. O desfecho do livro, em registro desencantado, afirma o realismo da trama e a torna ainda mais próxima da vida e de seus descaminhos.

Niccolò Ammaniti já é conhecido do leitor brasileiro por um livro bastante distinto deste Eu e você. O que é contenção na história de Lorenzo e Olivia, com foco na vida íntima e nas emoções mais pessoais, se torna crítica social sarcástica e violenta no painel descrito em A festa do século. Eu e você poderia se passar em qualquer lugar, já que Roma é apenas uma referência externa ao porão que acolhe os personagens. A festa do século é profundamente italiano em seu cenário de dissipação que evoca a figura execrável de Berlusconi em meio a seitas secretas e culto a celebridades. Agora é esperar o filme.

Trecho

“Certa manhã, eu estava em casa por conta de uma dor de cabeça fingida quando vi na televisão um documentário sobre insetos imitadores.Em algum lugar, nos trópicos, vive uma mosca que imita as vespas. Tem quatro asas como todas as de sua espécie, mas mantém um sobre a outra, e assim parecem apenas duas. Tem listras amarelas e pretas no abdome, antenas, olhos protuberantes e até um ferrão de mentira. Não faz nada, é boazinha. Mas, vestida como uma vespa, é temida pelas aves, pelas lagartixas, até pelos seres humanos. Pode entrar tranquilamente nos vespeiros, um dos lugares mais perigosos e vigiados do mundo, e ninguém a reconhece.

Eu tinha errado em tudo.
Era isso que eu devia fazer.
Imitar os mais perigosos.”

EU E VOCÊ

De Niccolò Ammaniti, de Joana Angélica d’Ávila Melo
Editora Bertrand Brasil, 160 páginas, R$ 29

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