sábado, 26 de janeiro de 2013

Palavra de mulher (trajetória de mulheres brasileiras) escritoras-Gustavo Fonseca‏

Livro de Norma Telles analisa a trajetória de mulheres escritoras que desafiaram os limites impostos pela cultura machista vigente no Brasil no século 19, revelando autoras que merecem ser resgatadas 

Gustavo Fonseca
Estado de Minas: 26/01/2013 
Mulheres em aula de datilografia, em Manaus, em 1902: sem liberdade para criar



Muito antes da francesa Simone de Beauvoir denunciar no clássico O segundo sexo, de 1949, a submissão a que eram condicionadas as mulheres na sociedade ocidental, outras escritoras de renome se engajaram nessa luta, buscando dar vazão às próprias ideias e convidando as mulheres a fazer o mesmo. No fim da década de 1920, por exemplo, a inglesa Virginia Woolf já explicitava no ensaio Um teto todo seu como os privilégios econômicos e materiais dos homens, inclusive o maior acesso a bens culturais e a formação educacional, os favoreciam em detrimento das mulheres, cujas possibilidades de desenvolvimento intelectual e de expressão eram limitadas. E 20 anos antes, com Três vidas, de 1909, a norte-americana Gertrude Stein revelava as sutilezas femininas ao narrar a história de três protagonistas, Anna, Melanchta e Lena, indo muito além das formas convencionais como as mulheres eram retratadas pelos homens, ora como símbolos da inocência, ora como a raiz de todo pecado. 

Recuando ainda mais no tempo, encontramos no século 19 grandes figuras femininas que conseguiram dar vazão em seus livros ao que pensavam e sentiam, verdadeiras precursoras das escritoras e feministas do século 20, como Jane Austen, Mary Shelley, as irmãs Brontë, Emily Dickinson, George Sand e George Eliot. No Brasil, ainda que pouco conhecidas atualmente, algumas autoras desempenharam papel semelhante, lutando contra uma sociedade repressora e patriarcal pelo direito de publicar seus textos. A trajetória dessas mulheres que ousaram desafiar os limites que foram impostos a elas é resgatada pela antropóloga e historiadora Norma Telles em Encantações: escritoras e imaginação literária no Brasil, século 19, tese de doutoramento defendida em 1987 e agora publicada em livro pela Editora Intermeios.

Com acuidade histórica, bem ao estilo arqueológico de Michel Foucault, antes de apresentar essas escritoras e suas ideias, Norma Telles reconstrói o discurso machista e patriarcal contra o qual elas tiveram de se insurgir, com raízes ibéricas transpostas ao Novo Mundo logo no início da colonização. Os jesuítas Manuel da Nóbrega e Anchieta, por exemplo, ainda no século 16, atribuíam os maus costumes dos colonos às índias, fato que levou o primeiro a escrever ao rei pedindo o envio de órfãs brancas, para que se casassem com os que tinham vindo para a América. Mais tarde, esse olhar misógino se estenderia às escravas negras, formando-se assim o estereótipo da branca ciumenta trancafiada em casa; da índia promíscua, sempre disposta aos prazeres da carne; e da negra sensual ao bel-prazer de seu proprietário. Como enfatizado por Norma Telles, a força desse olhar é tamanha que se faz presente mesmo na obra de autores consagrados do século 20, como Paulo Prado e Gilberto Freyre.

Justamente contra esse discurso preconceituoso se posicionarão as escritoras resgatadas por Norma Telles, em especial Narcisa Amália (1852-1924), Maria Benedicta Camara Bormann (1853-1895) e Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), às quais a autora se detém com mais vagar, dedicando a cada uma delas um capítulo. Muitas outras, porém, mereceram a atenção da antropóloga, mulheres que consagraram a vida a escrever todo tipo de gênero textual, ficcional e não ficcional, e a fundar e dirigir jornais e revistas com conteúdo voltado ao público feminino, como a divulgação da obra de escritoras nacionais e internacionais; o relato de profissionais liberais bem-sucedidas, entre as quais médicas, advogadas e professoras; a discussão de temas como a capacidade feminina de se desenvolver cultural e intelectualmente e a importância da educação da mulher, além do resgate de grandes figuras femininas da história, como Cleópatra, Florence Nightingale e Catarina II.

A velha sociedade patriarcal, claro, não veria com bons olhos essas iniciativas e as críticas a essas escritoras e jornalistas proliferaram, sendo em muitos casos introjetadas por elas. A professora e escritora Maria Firmina dos Reis (1825-1917), por exemplo, em texto de 1859, representa bem o quão difícil foi esse avanço: “Sei que pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o tracto e a conversação dos homens ilustrados, que aconselham, que discutem e que corrigem, com uma instrução misérrima, apenas conhecendo a língua de seus pais, e pouco lida, o seu cabedal intelectual é quais nulo”. Porém, a despeito das críticas que sofria e das próprias recriminações, Maria Firmina publica seu livro.

Pseudônimos masculinos 

Para evitar o confronto aberto, outras escritoras brasileiras se valeram de pseudônimos masculinos para divulgar seus textos, como o fizeram a francesa Amandine Aurore Lucile Dupi, que assinava George Sand, e a britânica Mary Ann Evans, que ganhou fama como George Eliot. Emilia Bandeira de Melo, a Carmem Dolores, por exemplo, assinava Loenel Sampaio, e Auta de Souza adotou o nome Hilário Neves. Algumas que assinavam o próprio nome se viram alvo de discriminação, como a poeta Francisca Julia, cujos versos o escritor Júlio Ribeiro acreditava ser, na verdade, do poeta Raimundo Corrêa. Tendo se retratado, Ribeiro prefaciaria mais tarde um livro dela. 

Ao revelar todos esses obstáculos que as autoras do século 19 enfrentaram, mas evitando simplificações do passado, Norma Telles foge ao risco de elevá-las à condição de heroínas imunes ao meio em que viveram. Na verdade, o maior mérito de Encantações é mostrar como as conquistas dessas escritoras se deram apesar de seus receios e inseguranças, muitas das quais reflexos da sociedade machista que corajosamente denunciaram em busca da própria voz. 

Encantações: escritoras e imaginação literária no Brasil, século 19
De Norma Telles
Editora Entremeios
516 páginas 


Três perguntas para...

Norma Telles
Antropóloga e historiadora

Passados mais de 20 anos desde que sua tese de doutorado foi defendida, nenhuma das autoras estudadas ganhou nova projeção no cenário nacional. A seu ver, essa situação é justa? Alguma das autoras analisadas em seu trabalho mereceria um olhar mais atento dos leitores contemporâneos? 

Passados mais de 20 anos desde que comecei a pesquisar escritoras brasileiras do século 19, penso que os ganhos e acertos das inúmeras pesquisas e das discussões, constantes em cursos e fóruns por todo o país, foram substanciais, não só por entender que uma tradição se forma em torno de inúmeros e diferentes escritores, como também porque trouxeram novas indagações, criticaram os binarismos dicotômicos que informavam o pensamento e sugeriram múltiplos temas e direções. Penso que as escritoras nossas contemporâneas, e são muitas e muitas, nos são mais próximas, mas isso não leva necessariamente a comparações de popularidade; as situações, os contextos, as linguagens são diversas. As escritoras que pesquisei, e outras tantas, foram reeditadas; antologias foram organizadas; e o trabalho delas tem sido divulgado e apreciado. 

No prefácio de seu livro, “Em defesa da escrita feminina”, assinado por Margareth Rago, enfatiza-se um modo feminino de escrever. Com a atual busca de uma escrita feminina, como o fazem as professoras Lúcia Castello Branco e Vera Queiroz, não corremos o risco de voltar a estereotipar as mulheres?


Margareth Rago usou uma expressão que talvez possa ser mal interpretada, mas lendo o prefácio penso que fica claro que com “escrita feminina” ela se refere a questões complexas e a perspectivas situacionais. Nunca a uma essência. E acredito ser esse também o caso das autoras que menciona, Lúcia Castello Branco e Vera Queiroz. Sem me estender sobre essas escritoras e ensaístas, conhecendo melhor o trabalho da primeira, penso que nenhuma delas busca uma essência feminina, mas trabalham também com diálogos, conversas, situações, a partir de perspectivas enriquecedoras.

A busca de uma escrita feminina não seria em si uma forma contemporânea de imposição de rígida identidade sexual, o mesmo se estendendo à temática negra (identidade étnica), gay (identidade afetivo-sexual), indígena (identidade étnica)...? Essa busca não diria tanto de nosso tempo quanto dizem do passado os discursos estereotipados sobre a mulher analisados em seu livro?

A busca de uma escrita feminina essencial não foi meu objetivo de trabalho, não acredito em essências, e busquei o oposto, a desconstrução dos estereótipos, das naturalizações e universalizações indevidas. A proposta da coleção Entregêneros, da qual o livro faz parte, é semelhante, não propõe uma lista de classificações fixas diferenciadas, mas sim, a partir de Foucault, Deleuze ou Derrida e de Butler, Braidotti, Scott e Iregaray, entender a sustentabilidade moderna da subjetividade em um fluxo, nunca em oposição a alguma hierarquia, embora intrinsicamente outra, sempre outra, sempre no processo de se tornar, sempre engajada em relações de poder dinâmicas, tanto criativas quanto restritivas.

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