terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Suzana Herculano-Houzel

FOLHA DE SÃO PAULO

NEURO
Sua rádio mental personalizada
Sem precisar de caixa de som nem de eletricidade, meu cérebro tocou a música que eu queria ouvir
O que fazer quando você gostaria de uma musiquinha de fundo para embalar seu trabalho, mas não tem nenhum aparelho ao alcance das mãos? Você pode apelar para sua rádio mental interna -cortesia daquela sua boa companheira, a memória.
Voltei de uns dias de férias em Paris determinada a reproduzir em casa a torta de maçã "de cabeça para baixo" que comi lá. Uma rápida consulta à versão francesa do oráculo eletrônico me retornou uma receita bastante simples e ilustrada, então fui para a cozinha tentar a sorte.
A cozinha é um de meus lugares favoritos para ouvir música, e temos uma caixinha de som sem fio, portátil e poderosa, que dá conta do recado. No entanto, meu marido ainda estava dormindo; meus fones sem fio, a próxima melhor opção, agora ficam no laboratório; e não quis interromper meu momento de inspiração culinária para ir à cata de algum tocador portátil que ainda me deixaria com um fio pendurado entre minhas mãos cheias de manteiga.
A solução? Notei que meu cérebro, com zero eletrônica e sem precisar de caixas de som, já estava tocando a música que eu queria ouvir: "Cálix Bento", do Milton Nascimento, de um disco que eu ouvi dezenas de vezes quando era criança.
Descobri que a versão reproduzida por meus neurônios, em sequências e padrões de ativação adquiridos e aperfeiçoados durante as várias audições repetidas, é bastante boa, e inclui o arranjo completo. Quando a memória da letra eventualmente falha, meu cérebro discretamente tapa os buracos com um "nãnãnã" genérico, até reencontrar o fio da meada, enquanto a melodia continua. Meu cérebro se autoengana muito bem.
Além de eficaz e silenciosa, minha rádio mental é personalizada: ao contrário das rádios que selecionam músicas segundo uma lógica alheia, em meu cérebro a transição segue minha experiência pessoal -e foi de "Cálix Bento" diretamente à próxima mais ouvida: "Saudades dos Aviões da Panair".
De onde veio a música? Provavelmente de um anúncio no jornal de uma peça de teatro com músicas do Milton, que me veio à mente talvez à visão do iPad, onde leio o jornal, na mesa da cozinha. Assim funciona a memória: por associação, uma coisa levando à outra mais fortemente vinculada -do iPad ao jornal, ao Milton, às suas músicas, e a uma em particular, provavelmente a que eu mais ouvi e portanto bem aprendi a reproduzir mentalmente de cor, com todos seus detalhes. Minha rádio interna sabe do que eu gosto...
SUZANA HERCULANO-HOUZEL é neurocientista, professora da UFRJ, autora de "Pílulas de Neurociência para uma Vida Melhor" (ed. Sextante) e do blogwww.suzanaherculanohouzel.com

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