quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

O baú do Caio F.

folha de são paulo

Troca de poema de Caio Fernando Abreu por música de Gilberto Gil adia a publicação de versos inéditos
MARCO RODRIGO ALMEIDADE SÃO PAULOA notícia atiçou a curiosidade de leitores no final do ano passado: finalmente a poesia de Caio Fernando Abreu (1948-1996) seria reunida em livro.
Quando morreu, aos 47 anos, Caio já era um autor consagrado de dezenas de contos, dois romances, crônicas, peças de teatro e artigos para jornais e revistas.
E também de centenas de poemas. Mas, fora um ou outro verso, Caio nunca publicou sua produção poética, desconhecida mesmo por fãs e especialistas em sua obra.
Em novembro, essa faceta oculta do escritor esteve prestes a vir à tona. A editora Record anunciou que no dia 30 chegaria às livrarias o livro "Poesias Nunca Publicadas de Caio Fernando Abreu".
Organizado pelas pesquisadoras Letícia da Costa Chaplin e Márcia Ivana de Lima e Silva, o livro, que nasceu como tese de doutorado de Chaplin, traria 116 poemas.
O título chegou a ser distribuído para a imprensa, mas, poucos dias depois, a editora cancelou a distribuição dos 3.000 exemplares para as livrarias. Alegou apenas que a atitude foi tomada em "virtude de um erro editorial".
Se o livro tivesse sido publicado, não seria difícil para um fã de MPB detectar o erro: a página 49 trazia, como se fosse poema de Caio, a letra de "Barato Total", de Gilberto Gil.
Os versos da canção foram localizados pelas organizadoras em um diário de Caio de 1976. Ao lado da letra há rostos de mulheres desenhados com caneta preta. Um deles seria o retrato da cantora Gal Costa, que gravou a música no disco "Cantar" (1974).
Procuradas pela reportagem, as organizadoras não responderam aos recados até o fechamento desta edição.
A Record informou que o livro está em processo de análise e que uma edição corrigida será lançada. A data ainda não foi definida.
Paula Dip, autora da biografia "Para Sempre Teu, Caio F." (ed. Record), vai revisar o livro. Ela conta que proporá a substituição de "Barato Total" por um poema que não integrava a versão recolhida e o acréscimo, na introdução, de um texto que explique o erro.
Além disso, Dip quer incluir as palavras que as organizadoras não conseguiram identificar nos manuscritos originais e que aparecem no livro com a legenda "palavra ilegível".
VERSOS OCULTOS
Os manuscritos dos poemas de Caio estão hoje na PUC -RS, em Porto Alegre, que mantém seu acervo. A maior parte do material foi doada pelo amigo e diretor de teatro Luciano Alabarse; o restante estava em diários com a família.
O material a que as organizadoras tiveram acesso mostra que ele escreveu poesia durante toda a carreira. Os primeiros versos são de 1968, o último, de 1996. Curiosamente, o autor nunca manifestou intenção de publicá-los.
"Ele era muito perfeccionista. Dizia 'não sou poeta, escrevo poesia muito mal'. Ele se via mesmo como contista", diz Dip, que foi amiga do autor.
Apesar disso, seus contos e poemas têm forte ligação. Nos dois casos sobressaem temas como a solidão e o desencanto. As referências musicais são outro ponto em comum.
Caio usou trechos de letras de Caetano Veloso e citou músicos como Tom Jobim em alguns poemas. À intérprete de "Barato Total" ele dedicou, além de desenho no diário, um verso do poema "Rômulo": "Fomos ver o show da Gal cantando deixa sangrar".

Colaborou RAQUEL COZER, colunista da Folha

    ANÁLISE
    Versos retratam ressaca que se abateu sobre a geração do autor
    LUIS DOLHNIKOFFESPECIAL PARA A FOLHAA poesia de Caio Fernando Abreu, inédita em livro e agora coligida cronologicamente (1960-1990), tem sua fase melhor no fim dos anos 1970, quando o eu lírico se volta para seus "companheiros de viagem" (em mais de um sentido): os integrantes de sua geração e suas circunstâncias.
    Era o "momento pós-utópico" do "the dream is over", a fria madrugada histórica de um tempo menos solidário e mais solitário, que tais poemas flagram.
    A poesia testemunhal não tem seu valor no que testemunha, mas em como o faz. E aqui o testemunhal/confessional consegue ficar à altura da ressaca que se abateu sobre a geração da festa paradoxal dos anos 1960-70 (com seu pano de fundo na Guerra Fria).
    Sua dicção sugere que a linguagem do modernismo ainda mantinha alguma reserva de energia para falar do e para o fim do século: há aqui paralelos temáticos com a ficção do autor, como as questões comportamentais da época, que se somarão a "subtemas" de sua predileção, como o mofo, as cidades onde viveu e a cultura de massa (música e cinema).
    O melhor poema do livro é também desse período, "Realista nº 2". Sua primeira qualidade é a síntese, que resulta de um ocultamento
    Ele fala do amor infantil ("tia Clara vestida de branco") e do precocemente senil ("supositório contra hemorroidas na farmácia suja"), mas não do amor juvenil.
    Este "explicaria" -e justificaria- como e por que se vai da pureza infantil à derrocada. Mas se revela um episódio olvidável entre a memória da infância e a experiência da decadência.
    Incluindo a do amor afinal quase anulado pela solidão, reduzido à autopenetração por um objeto terapêutico.
    Nem Eros nem erotismo. Se não há vida além da morte, há vida além do amor. Mas não há ilusão. Tampouco a de que todos os poemas de Caio mantêm a mesma fatura.
    LUIS DOLHNIKOFF, é escritor e crítico literário, autor, entre outros, de "Lodo" (ed. Ateliê, 2009)

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