domingo, 31 de março de 2013

‘A Questão Finkler’, humor e melancolia

folha de são paulo
Raquel Cozer

“A Questão Finkler”, de Howard Jacobson, 70, ficou conhecido em 2010 como o primeiro romance de humor em quase 25 anos a ganhar o prestigioso Man Booker Prize, para títulos em língua inglesa. Descrição um tanto injusta: mesmo sem o humor seria um livraço.
A obra trata de três amigos ligados ao judaísmo, no bom e no mau sentido. Há Julian Treslove, um gói obcecado pela improvável chance de ter raízes judaicas. Há também Libor Sevcik, judeu tcheco de quase 90 anos a quem a origem importa menos que a morte de Malkie, sua mulher por mais de meio século. E há Samuel Finkler, judeu tão avesso a Israel que prefere usar “Sam”, negando a origem, na assinatura de seus best-sellers de autoajuda filosófica.
O humor predomina nas discussões em torno da questão judaica (“finkler”, sobrenome do amigo, é como Treslove chama todos os judeus), mas há também melancolia em temas nada relacionados a política. Escrevi sobre o romance na última semana na Ilustrada. Segue abaixo a entrevista com Jacobson, autor de opiniões contundentes sobre o debate em torno da questão judaica, o humor na literatura e o futuro dela como um todo.
 ***
“A Questão Finkler” aborda a experiência de ser judeu na Inglaterra. No que um judeu inglês é diferente de qualquer outro?Escrevi o livro para tentar entender isso. Ser judeu na Inglaterra não é como ser judeu em nenhum outro lugar, ao menos nos lugares que aparecem na literatura. Não é como ser judeu em Israel ou nos EUA. Os judeus ingleses sempre se comparam aos americanos com inveja pela posição confortável que estes ocupam na cultura. Em Nova York há milhões deles, escritores, músicos ou pintores. Dá para dizer que a cultura americana é quase judaica, pensando no romance americano contemporâneo, por exemplo.
Já na Inglaterra somos uma minoria, só 250 mil no país inteiro. Não fazemos barulho, não pedimos atenção. Não é como se quiséssemos sair do país. Estamos bem aqui. Mas não é uma boa ideia emanar a confiança judaica na Inglaterra. Nos EUA, eles já faziam parte da cultura quando a cultura surgia. Hollywood, os quadrinhos, a literatura, o que você pensar: os  judeus estavam lá. Aqui não, há uma cultura firme, anglo-saxã, que não lhes é hostil, mas não é selvagemente receptiva. Você tem de ir com cuidado.
Fala-se muito no humor inglês e também no humor judaico. Como o sr. definiria o seu tipo de humor?Sou um autor inglês antes de ser um autor judeu, mas, após tanto escrever sobre a questão judaica, fiquei em dúvida: “Será que pensam em mim como um autor estrangeiro?” Eles pensam e não pensam. Acho que o modo como junto comédia e tragédia, a maneira como brinco com algo sério ou trágico, o jeito como meu humor se arrisca com a dor, isso não é algo que um inglês faria com naturalidade, e eles têm certa dificuldade de entender isso. Não é uma batalha, não quero bancar o mártir. Não estive em campos de concentração, não estou em agonia, só sinto que minha voz não é bem inglesa, é um pouco estrangeira.
O sr. cita no livro uma frase do cineasta Ken Loach sobre o antissemitismo ser compreensível dada a postura do governo israelense. O próprio Finkler, personagem que dá nome ao livro, é antissionista e chega a ser acusado de antissemitismo. Como diferenciar o que é crítica e o que é antissemitismo?
Esse é um tema que exige clareza. Não acho que quem critica Israel seja necessariamente antissemita. Não é errado criticar [o premier israelense] Netanyahu e suas políticas. Muitos judeus são críticos a Israel, muitos israelenses o são. Mas há um problema quando se criticam não só as políticas israelenses, mas os judeus e o sionismo como um todo. Quando vejo isso, desconfio das motivações. A Europa não tem uma boa história com judeus. Gente da França, da Itália, da Alemanha, da Inglaterra, o primeiro país a expulsar os judeus, deveria hesitar antes de criticar o sionismo, que começou como necessidade. Quem não vê essa necessidade, ao menos isso, não entende que àquela altura tínhamos um problema. Não significa que o sionismo tenha terminado bem ou que não saibamos que é um problema para árabes e palestinos. É um problema real e sério.
E é uma discussão central no romance.Decifrar se as críticas são antissemitas ou não é algo que ocupa muito a vida dos ingleses. Na vida intelectual inglesa há uma obsessão sobre Israel, chegando a ir além de uma posição política honesta. Não há país que você possa amar politicamente e não há motivo para amar Israel politicamente, mas terá Israel cometido crimes para os quais caibam nomes como fascismo e nazismo? E, se não, porque há quem use essa denominação? Especialmente em jornais intelectuais de esquerda… Escrevo para um deles, o “Independent”, e ao longo dos anos tive discussões com outros colaboradores do jornal. Entre eles, Israel virou uma obsessão. Deixou de ser um lugar real e virou fantasia. Assim como para muita gente que ama Israel.
Para os personagens de “A Questão Finkler”, não há uma Israel real. Ninguém vai lá, não há nenhum israelense. Tudo são pessoas trocando impressões, idealizando. Isso é o que me interessa. Podemos ter essa conversa de novo e de novo, e foi o que tentei recriar, essas discussões randômicas, inclusive a parte cômica disso. Temos essa conversa tantas vezes que às vezes olhamos um para o outro e pensamos: lá vamos nós de novo…
Como é a sua relação com Israel?Já escrevi e fiz documentários sobre Israel. Anos atrás escrevi um livro, “Roots Schmoots”, uma viagem pelo mundo judaico e que termina na Lituânia, de onde veio minha família. Também fiz um documentário para TV, no qual fui crítico a coisas de que não gostei, coisas terríveis que ouvi de ambos os lados. Você já foi a Jerusalém?
Não, nunca.Jerusalém dá uma sensação extraordinária de viagem no tempo. Você se sente de volta ao mundo bíblico. As pessoas vivem batalhas lá, emocionais, intelectuais, religiosas, como há 5.000 anos. Toda vez que vou a Israel me sinto extasiado e perturbado com isso. Sou um judeu da diáspora, acostumado a viver longe de um grande número de outros judeus. E cresci amando ser alguém de fora. Para um escritor, é útil nunca se sentir em casa, porque a escrita tem a ver com expressar um distanciamento, a sensação de falta de abrigo..
Isso também é importante para o humor. Gosto dos grandes autores israelenses, Amos Oz, A.B. Yehoshua, David Grossmann, são todos maravilhosos. Mas nenhum deles é engraçado. Há uma seriedade, um sentimento de pertencimento. Ser um escritor judeu em Israel não deixa espaço para o humor, isso seria uma espécie de luxo. Quando você lê esses autores, acha que está brincando de ser judeu. Eles devem achar que sou judeu de mentirinha. Até me sinto meio culpado, como se eles fossem os verdadeiros judeus, e não eu.  Depois repenso, não, não é verdade. Porque o humor também faz parte do que é ser judeu. É o humor mais sério que existe, e no entanto é humor. Consigo entender porque os israelenses não têm isso, mas acho que a nova geração pode ser capaz. Eles conhecem essa sensação de falta de abrigo em Israel, muitos pensam que aquele não é o país em que querem viver.
Apesar do humor, “A Questão Finkler” também é bastante melancólico. Como foi conciliar essas duas características?Sempre gostei dessa mistura em obras de outros autores e não sabia se poderia fazer. Acho que esse livro resultou mais melancólico que meus livros anteriores por causa da minha idade, que já torna tudo mais melancólico, e também porque foi a primeira vez que escrevi sobre alguém bem mais velho que eu. Normalmente escrevo sobre jovens ou personagens da minha idade.
Acho que Libor, o personagem mais velho que perde sua mulher, é o melhor personagem que já criei. Muitos me disseram que ele os fez chorar, e me fez chorar, inclusive. Eu não sabia que se tornaria uma história tão dramática. Só queria escrever sobre um homem que chegou perto dos 90, ficou viúvo depois de um casamento longo e apaixonado, e não sabia o que fazer com a vida agora. Vi pessoas idosas sofrendo com a intensidade do amor, da saudade. É chocante e lindo ao mesmo tempo. É lindo que sintam isso e aterrorizante que ainda sintam isso. Isso faz você perceber que nunca haverá uma época em que sentirá paz.
Sou meio como Treslove, o personagem obcecado pela tragédia, fico imaginando como será quando ela acontecer. Temo saber como seria se minha mulher, a mulher que eu amo, morresse antes de mim, se saberia lidar com isso. Escrevi “Finkler” a partir desse medo, e foi uma nova maneira de escrever para mim. Escrever não sobre o que sei, mas sobre o que temo. O medo me fez escrever com peculiar intensidade e tristeza, e isso atravessa o livro.
O sr. acha que foi a melancolia que fez o livro ser premiado?
Acho que sim. Apesar do lado triste, esse foi o primeiro livro de humor a vencer o prêmio em muitos anos. Não é um livro propriamente cômico, embora faça rir. É um livro trágico, mas é uma boa história dizer que um romance de humor levou o prêmio. Quando o júri anunciou o prêmio e começou a descrever o vencedor, antes de falar o nome do livro, destacou  a melancolia. Jurados disseram que o livro os fez chorar. É difícil alguém ganhar um prêmio só fazendo as pessoas rirem. Ótimos romances, como “Dom Quixote”, fazem rir, mas as pessoas desmerecem isso. Não gostam de rir e de se reconhecer rindo ao ler, não reconhecem isso como algo pertencente à literatura. Eles estão errados.
De todo modo, a melancolia torna mais fácil a aceitação. A mistura de riso e dor,  juntar as duas na mesma frase, fazer alguém rir e chorar, essa é minha ambição.
O sr. escreveu um romance sobre o fracasso literário logo depois de ganhar o Man Booker Prize. Houve alguma relação entre esses dois fatos?Sim, se chama “Zoo Time” e acabou de sair na Inglaterra. Muitos ficaram surpresos com isso. É claro que isso demanda certa confiança, e ganhar um prêmio importante me fez sentir mais à vontade com um assunto tão sério.
Há um problema sério em relação ao que as pessoas estão lendo. Aqui neste país 5 milhões de pessoas compraram “Cinquenta Tons”. Antes disso adultos liam “Harry Potter”, não só crianças, mas adultos. Então você presta atenção no estado da leitura, vê o nível de degradação a que esse cenário chegou. Vejo estudantes com uma nova forma de arrogância, dizendo que não gostam de determinado livro porque ele não é bom, sem parar para pensar que talvez não gostem por incapacidade de entender.
Eu me preocupo com a saúde da literatura. Comecei a escrever esse livro antes de ganhar o prêmio, então ganhei, e quando você ganha um Booker você não faz mais nada por seis meses –aliás, se não tomar cuidado, não faz mais nada pelo resto da vida. Depois de seis meses, eu me perguntei se conseguiria voltar a esse livro e escrever sobre o fracasso literário. Descobri que sim. Poderia escrever sobre todas as coisas que me preocupam, o fato de livrarias e bibliotecas estarem fechando, a desvalorização da escrita, a perda de concentração dos mais jovens. A ideia de um romance ser algo em que você mergulha por várias semanas sem querer fazer mais nada, tudo isso está mudando.
Poder falar isso do ponto de vista de quem conhece o sucesso, de modo que as pessoas não pudessem dizer que sou apenas um velho fracassado amargo sobre a vida, bem, isso ajuda.

Um comentário:

  1. Gostei bastante da entrevista. Não conhecia nem o autor nem a obra, mas despertou-me a curiosidade para esta literatura de humor e melancolia. Surpreendeu ele ao final comentar sobre os leitores de hoje, acho que sinto a mesma angústia com relação àqueles que leem no Brasil.
    Ótimo blog também,parabéns.
    Att.
    Nina

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