quarta-feira, 20 de março de 2013

Acaju? - Antonio Prata

folha de são paulo

Acaju?
Como assim, pessoal? Por que eu pintaria o cabelo escondido? E por que usaria bem o tom do Silvio Santos?
Primeiro, foi o Fabrício: chegou ao bar, sentou-se à minha frente, encarou-me e com a honestidade que lhe é habitual, perguntou: "Mano, cê tá pintando o cabelo?". Soltei uma gargalhada, pedi dois chopes e esqueci o assunto.
Uns dez dias depois, foi o Flávio: conversávamos na fila do cinema e reparei que seus olhos escapuliam a toda hora para o meu cabelo -como se espiassem, em algum ponto de minha franja, o decote de uma mulher. "Tá olhando o que, Flávio?!" "Nada, nada", ele disfarçou, engatando um papo sobre o filme. Resolvi não pensar a respeito: devia ser apenas coincidência.
Domingo, contudo, não deu mais para ignorar a situação: terminado o almoço de família, meu pai me chamou de lado, pôs a mão em meu ombro e, zeloso, cuidando para que nenhum parente ouvisse, cochichou: "Acaju?".
Que fique claro: não tenho nada contra quem pinta o cabelo. A natureza é cruel, a vida é curta, cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é -ou, no caso, o que não é. Se estivesse ficando grisalho, talvez até cogitasse tingir, mas não estou: a passagem do tempo ameaça meu cocuruto menos com a brancura invernal do que com as copas desnudas do outono, razão pela qual, desde que as entradas começaram a galgar meu couro cabeludo (sic), lá pelos 17 anos, passei a tomar diariamente um comprimido de Finasterida.
Sim, sarcástico leitor, aquele comprimido que causa, em 1% dos usuários, a perda temporária da libido -e em 99% das menções, piadas a respeito. Garanto, contudo, que nunca senti os efeitos colaterais. Minhas brochadas, dos 17 para cá, foram 100% orgânicas, fruto da soma de minhas inseguranças às opressivas qualidades de algumas moças, pobres moças, que esperavam atingir os píncaros da glória e escalaram somente o ápice de meu constrangimento. Ou, pelo menos, o que eu acreditava ser o ápice do constrangimento, até descobrir, dias atrás, que meus amigos, parentes e colegas de trabalho acham que eu pinto o cabelo. Escondido. De acaju.
Como assim, pessoal? Eu faço análise. Frequento o Teatro Oficina. Falei de calvície e brochadas, um parágrafo acima. Por que iria pintar o cabelo escondido? E, se o fizesse, por que diabos escolheria o tom usado por Silvio Santos?
Por mais que eu me defenda, contudo, o espelho obriga-me a dar aos boatos algum fundamento. Meu cabelo, que foi loiro na infância e castanho desde a adolescência, deu para, aos 35 anos, irrefletidamente refletir um suspeitíssimo escarlate -ou, como diz o Houaiss, na precisão cruel dos dicionários, certa cor "castanho-avermelhada da madeira do mogno": o acaju.
Não sei se é o sol, a falta de sol, o aquecimento global, o glúten, a Fenilalanina ou o stress, sei é que me encontro numa sinuca de bico: se quiser que parem de pensar que tinjo o cabelo, terei de começar a tingi-lo. Informei-me a respeito e parece que se me submeter a umas tais "luzes", obterei um efeito que lembra o grisalho -ou o Bon Jovi, dependendo da fonte consultada. Que situação.
Talvez a única saída digna seja parar com a Finasterida, deixar que o outono chegue e leve consigo o que lhe é de direito. Cruel é a natureza - mais cruel, só mesmo o acaju.
antonioprata.folha@uol.com.br
@antonioprata

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