quarta-feira, 20 de março de 2013

O entrave da Vila Itororó - Angelo Iacocca [Tendências/debates]

folha de são paulo

ANGELO IACOCCA
TENDÊNCIAS/DEBATES
O entrave da Vila Itororó
O singular palacete do Bexiga, símbolo do período de riqueza e ostentação do início do século 20, virou um imenso cortiço
No início do século 20, a cidade de São Paulo prosperava impulsionada pela riqueza oriunda do café e da nascente indústria. Foi quando começou a ganhar ares de metrópole, com a edificação de imponentes edifícios públicos e palacetes residenciais. Nos chamados bairros nobres, surgiram luxuosas mansões e as vilas, casarões em estilo europeu cercados por amplos jardins.
Algumas dessas residências tiveram grande importância na vida social e cultural da cidade. Uma era o palacete da fazendeira Olívia Guedes Penteado, nos Campos Elíseos, onde Mário de Andrade e Oswald de Andrade liam seus textos para os convidados e Anita Malfatti e Tarsila do Amaral aproveitavam para mostrar suas primeiras obras.
Um tanto diferente, a Vila Itororó surgiu no bairro da Bela Vista, ocupando os terrenos alagadiços do vale do Itororó, onde hoje passa a avenida 23 de Maio. Seu idealizador foi o imigrante português Francisco de Castro, que iniciou um processo de construção de pequenas casas utilizando material de demolição. Em poucos anos, a vila contava com 37 casas, espalhadas desordenadamente por tortuosas ruelas que lembravam aldeias medievais.
Ocorre que Francisco de Castro também alimentava o sonho de construir no local um palácio, e a oportunidade viria por ocasião da demolição do Teatro São José, destruído por um incêndio em 1917. Ele comprou todo o material utilizável que restou. Ao ficar pronto, no início dos anos 1920, o palacete de três andares, com entrada principal pela rua Martiniano de Carvalho, ostentava grandes colunas gregas, vitrais coloridos, carrancas, estátuas, vasos e outros ornamentos. A população apelidou o casarão de castelo do Bexiga.
O singular palacete também se tornaria símbolo de uma época. Amante da boemia, Francisco de Castro logo passou a realizar festas frequentadas por políticos, artistas e intelectuais em noitadas que se prolongavam até altas horas, culminando com banhos numa piscina com água do riacho Itororó.
Hoje, quem procura alguma referência a esse período de riqueza e ostentação fica decepcionado. São Paulo perdeu muitos dos seus prédios de então. A Vila Itororó sobreviveu, mas nada sobrou do glamour de outrora. Ao morrer, o proprietário deixara muitas dívidas e o imóvel, depois de ser comprado por uma tia do ex-governador Adhemar de Barros, foi doado à Santa Casa de Indaiatuba. Logo entraria num processo irreversível de deterioração e abandono. Em poucos anos, virou um imenso cortiço.
Meu primeiro contato com a Vila Itororó remonta a janeiro de 1977, quando dava os primeiros passos na carreira de jornalista. Na função de repórter do jornal "Aqui São Paulo", tabloide semanal criado por Samuel Wainer, fui escalado para entrevistar os arquitetos autores de um projeto para revitalizar a Vila Itororó.
Ao longo desses 35 anos, a vila foi totalmente descaracterizada pela construção de "anexos" ilegais nas casas e pela total deterioração do histórico palacete. Há alguns anos, o projeto de recuperação finalmente foi aprovado, criando um espaço cultural e gastronômico
No entanto, após o tombamento do imóvel e a retirada dos moradores do local, o entrave quanto ao início das obras de restauro continua, apesar das promessas oficiais. De olho na Copa de 2014, algumas entidades do Bexiga estão se organizando para revitalizar o bairro. Acredito que, para o prefeito que agora comanda São Paulo, será uma boa oportunidade de resgatar um pouco da memória paulistana.


FLAVIO COMIM
TENDÊNCIAS/DEBATES
O mirabolante IDH de 2012
O "IDH sombra", calculado por quem diz que o Brasil avançou, faz pouco sentido técnico e impossibilita comparações com outros países
No princípio, parecia que a divulgação do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) brasileiro de 2012 seria um evento monótono. Afinal, os cálculos oficiais do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) indicavam uma estagnação da posição brasileira (85ª) no ranking em comparação a 2011, repetindo a mesma notícia do "progresso a passos lentos" dos últimos anos.
Mas a forte crítica do governo brasileiro aos números divulgados e a criação de um "IDH sombra" fizeram com que esse lançamento gerasse muitas controvérsias interessantes. Dependendo de como se olhe, pode-se concluir que o país está pior, igual ou melhor no seu desenvolvimento humano, o que configura uma situação extraordinária.
Aqueles que acham que o país está pior se guiam pela posição nominal do Brasil no ranking. Desde 2005, quando o IDH brasileiro ocupou a 63ª posição, o país vem caindo na lista. Em 2010, o Brasil estava em 73º, em 2011 em 84º, em 2012 em 85º (a pior posição do Brasil no ranking do IDH de toda a história).
Difícil negar que a distância que separa o Brasil do topo dos países mais avançados no IDH não vem aumentando, quando a taxa de crescimento do IDH do país caiu de 1,26% ao ano (de 1990 a 2000) para 0,73% ao ano (de 2000 a 2012).
Aqueles que acham que o país está na mesma levam em conta um argumento técnico, que, apesar de sensato, diminui a transparência pública do indicador. Para fazer uma comparação apropriada, argumenta-se, é preciso recalcular o IDH do ano anterior, atualizando-o. No caso presente, se calcula um "novo IDH de 2011" para calcular o progresso do país em relação a 2012.
Ao fazer essa conta, se "descobriu" que o Brasil não estava na posição 84 em 2011, como anunciado antes, mas sim na 85. Nessa leitura, que é a oficial, o país permaneceu constante no ranking. Os leitores de George Orwell podem, no entanto, se sentir vindicados pela obscuridade das revisões contra-factuais que acontecem em anos que "nunca existiram".
Aqueles que acham que o país está melhor, como o governo brasileiro, reclamam do uso de dados defasados no cálculo do IDH, promovendo o "exercício" (assim foi chamado) de um recálculo de um "IDH sombra", baseado só em dados brasileiros, mesmo estando cientes de possíveis erros na sua elaboração.
Assim, em vez de 73,8 anos de expectativa de vida, foram usados 74,1. Em vez de 7,2 anos médios de estudo, foram usados 7,4. Em vez de 14,2 anos esperados de estudo, foram utilizados 15,7. E em vez de US$ 10.152 de renda per capita, foram usados US$ 11.547 (onde claramente parece haver um erro). Ignorando todos os problemas de harmonização internacional desses dados, chegou-se à conclusão de que o Brasil, no ranking de 2012, teria subido 16 posições, passando para a 69ª.
O mirabolante de tudo é que o "exercício" do "IDH sombra" faz pouco sentido técnico e desrespeita o trabalho de harmonização de estatísticas internacionais feito pela equipe do Pnud. Além do mais, não permite comparações com outros países, servindo para pouco.
Por sua vez, o recálculo retrospectivo do IDH parece correto para o valor bruto do índice, mas pode enganar quando se trata do seu ranking. Quando esse recálculo é feito em cima de um IDH calculado com valores máximos e mínimos móveis (desde 2010), produzimos um índice que é a antítese dos valores de transparência e estímulo à razão pública promovidos pelo IDH.
Fiquemos com o mais correto e mais simples. Evitemos o mirabolante. Assumamos nossas deficiências estruturais em prol da justiça social no nosso país.

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