sexta-feira, 29 de março de 2013

Otite é mais comum em mamíferos-Marcela Ulhoa‏

De acordo com pesquisa do Reino Unido, a ausência de pelos em uma parte do ouvido médio deixa a estrutura vulnerável a infecções


Marcela Ulhoa


Estado de Minas: 29/03/2013 

Aproximadamente uma em cada cinco crianças no mundo é afetada pela otite secretora, doença definida pelo acúmulo de líquido no ouvido médio. Quando acontece o entupimento, os três ossos contidos nessa parte da orelha são impedidos de vibrar livremente e acabam por bloquear a passagem do som do tímpano para o ouvido interno. O resultado é a perda auditiva temporária. Foi no intuito de entender o fato de algumas crianças serem mais propensas do que outras para desenvolver problemas crônicos no ouvido, com crises repetidas de otite, que pesquisadores da King’s College London se lançaram em uma interessante pesquisa sobre o desenvolvimento embrionário da orelha.
A partir de estudos com camundongos, os cientistas descobriram que as células que revestem a cavidade da orelha média dos mamíferos são provenientes de dois tipos de tecidos: as células da endoderme e da crista neural. Enquanto a parte do forro originária da endoderme é coberta por uma capa de cílios (pelos) que ajudam a limpar os detritos da orelha, os pesquisadores descobriram que o revestimento derivado das células da crista neural já não têm esses cílios. Dessa forma, uma parte do ouvido médio torna-se menos eficiente na limpeza dos resíduos, ficando mais vulnerável à infecção.
“Descobrimos que a orelha dos mamíferos não se forma exatamente do jeito que pensávamos. O seu revestimento é constituído por células de duas partes completamente diferentes do embrião, a endoderme e a crista neural”, explica Abigail Tucker, autora principal do estudo. De acordo com ela, até hoje a teoria principal da embriologia não considerava a participação da crista neural, componente da ectoderme, no processo de desenvolvimento do ouvido humano. Por meio da análise do mesmo processo em aves e répteis, Tucker lançou a hipótese de que essa é uma característica presente apenas em mamíferos, já que não foram encontradas evidências semelhantes nas outras espécies. “O ponto de partida é que essa peculiaridade afeta o tipo de revestimento do ouvido, o que altera a atuação do tecido como uma barreira contra a infecção”, diz a autora.

Evolução Os mamíferos são os únicos animais que têm três ossos na orelha média: martelo, bigorna e estribo. Conectados entre si, eles formam uma ponte entre a membrana timpânica e a janela oval. Nas aves, nos répteis e nos peixes existe somente um osso, utilizado pelas espécies para articular a mandíbula superior e a inferior. “Os mamíferos evoluíram para uma forma totalmente diferente de articular as mandíbulas de forma tal que a articulação original e os ossos se tornaram redundantes e se deslocaram para o ouvido médio. Uma mudança bastante estranha e maravilhosa em sua função”, comenta Tucker.
Segundo os autores da pesquisa, a participação de dois tipos de células distintas para criar o revestimento da cavidade do ouvido médio pode estar relacionada com a necessidade de criação de um espaço cheio de ar para abrigar dois ossos a mais. As estruturas excedentes dificultam ainda mais o processo em que a orelha se transforma em um espaço cheio de ar. “Acreditamos que, para resolver o problema dos três ossos, nos mamíferos aconteceu um evento único, a transformação da crista neural em um forro, para cavitar as orelhas”, explica Tucker.
A maior parte do ouvido médio, inclusive, é composta pela camada exterior do embrião em desenvolvimento. Isso porque, quando os três ossos são formados, eles se reúnem em uma massa de tecido da crista neural. Esse tecido, entretanto, tem que ser substituído por um espaço cheio de ar para que os ossos possam vibrar e funcionar. “Mostramos que isso acontece pela retração da crista neural para longe dos ossículos, formando assim o revestimento epitelial”, detalha Tucker.
A autora explica ainda que a crista neural é, na verdade, um tipo de célula mesenquimal, que pode migrar por toda a cabeça e formar uma variedade de estruturas, como ossos e cartilagens. Apesar da versatilidade, essas células não são conhecidas por formar revestimentos epiteliais. Para chegar a esse efeito, as células mesenquimais devem se transformar primeiramente em um tipo de célula epitelial.

Terapias inalteradas
De acordo com Bruno Loredo, otorrinolaringologista do Hospital Santa Luzia, as células que não se diferenciam no epitélio e formam um foco de tecido mesenquimal na orelha podem predispor um aumento de infecções. “A orelha média tem que ser completamente aerada. Se tiver alguma estrutura obstruindo o canal, existe mais chance de infecção e de descamação da pele”, explica. O médico esclarece que o epitélio é a camada de células que cobre o ouvido médio, como se fosse a sua pele. Apesar de considerar importante a hipótese da dupla origem do epitélio, Loredo defende que a descoberta não altera a prática clínica. “Como não temos como mudar a estrutura da orelha média, não temos como alterar o que já é nosso procedimento padrão”, diz.
Ricardo Bento, titular da otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, acrescenta ainda que o ouvido médio do ser humano e todo o sistema fisiológico são diferentes dos outros mamíferos. Dessa forma, existem outros fatores que podem desencadear o processo inflamatório no órgão. “A orelha média é uma cavidade fechada que só tem comunicação com o exterior por meio da tuba auditiva no nariz. É essa estrutura que faz a drenagem do líquido.”
Segundo Bento, a anatomia da tuba auditiva das crianças é diferente da dos adultos. Por ser mais horizontal, a dos pequenos drena menos as secreções e, por isso, elas são ainda mais suscetíveis a infecções. Dessa forma, para o especialista, o que a pesquisa da King’s College London faz é colocar uma nova questão para entender a alta incidência do problema entre as crianças: a influência do desenvolvimento embriológico. Conforme a autora do estudo, conhecer a origem das células é importante para a compreensão de sua função futura. “Às vezes, a evolução é imperfeita e novos desenhos podem ter falhas”, avalia Tucker.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário