quarta-feira, 22 de maio de 2013

Marcas da tortura - MARIA HELENA GOMES DE SOUZA

O Globo - 22/05/2013

De esposa de torturador passei a
viúva de torturador: sou apontada,
evitada, porque não abandonei
meu falecido marido, o médico
Amílcar Lobo. Permaneço
acuada, aviltada pela esquerda e
pelos militares. Minha esperança
agora é a Comissão da Verdade


Esta é uma tentativa de expor a tortura que vivo desde que meu falecido marido Amílcar Lobo fez sua denúncia sobre a morte do deputado federal Rubens Paiva (PTB-SP), cassado pelo regime militar em 1964, preso em sua casa no Rio em 20 de janeiro de 1971 e desde então desaparecido.

Meu marido cumpriu o serviço militar obrigatório na Polícia do Exército, no quartel da Tijuca, Zona Norte do Rio de Janeiro. Lá ouviu falar, escutou e presenciou o lamento de jovens contrários à ditadura então estabelecida no país, enquanto eram barbaramente torturados. Esse fato que marcou a vida do jovem tenente-médico Amílcar Lobo de forma extremamente negativa.

Durante a ditadura (1964-1985) calou-se com medo das possíveis represálias - afinal, conhecia de perto os métodos aplicados àqueles que não compartilhavam do mesmo pensamento. Foi omisso, por medo. Medo pela sua vida e de seus familiares, mas carregou consigo a memória do som insuportável dos gemidos, das cenas de violação dos direitos humanos ao grau máximo.

Meu marido não queria guardar consigo estes desmandos - escreveu um livro com episódios, como o encontro com Rubens Paiva torturado na prisão. Não buscava punir ninguém. Desejou até os últimos dias expiar sua culpa, mas a sociedade não queria ouvi-lo. Havia uma ardente necessidade de punir, de dar o exemplo, mostrar que nós, sociedade brasileira, éramos capazes de fazer justiça. E assim o condenaram, o acusaram de forma vil.

Hoje, ainda vivo na expectativa de que novamente irão nos acusar. Mudei o status de esposa de torturador para viúva de torturador. Sou apontada, evitada por muitos como tal, porque não o abandonei e abracei sua causa como minha, de acordo com os ensinamentos cristãos que recebi. Fomos casados na alegria e na dor e assim permaneço, acuada, subjugada, aviltada pela esquerda por dar o caso como concluído, vangloriando-se da vitória, e pelos militares por sermos "traidores da pátria".

Por vezes já ouvi que devo me conformar, mas minha consciência diz que devo lutar para elucidar a atuação do meu falecido marido, pagando, sim, pelos seus erros e pondo um ponto final neste triste episódio.
Não é possível quebrar paradigmas sem discuti-los à exaustão. E é com essa certeza que venho lutando, batendo em várias portas sem encontrar nenhum acolhimento. Só o que recebo é repúdio ou silêncio. Ninguém quer meter o dedo na ferida, avaliar os fatos com imparcialidade, verificar o que poderia ser feito no contexto da época.

Minha esperança agora é que a Comissão da Verdade abra realmente um amplo debate nacional sobre a questão da tortura.

A tortura me persegue até hoje e precisa ter um fim. Não posso ignorá-la, pois permanece, pairando, clamando por justiça a partir de uma investigação a fundo. É preciso essa investigação. Não só para que eu tenha paz e deixe de ser apontada como a viúva de torturador, mas para que a sociedade passe efetivamente a repudiar a tortura no cotidiano, não permitindo que se repita.

Evitar falar no assunto, negar ou defendê-la não nos levará a mudanças. É preciso conscientizar, apontar erros e acertos de ambos os lados, sair deste dualismo entre o bem e o mal e ir em frente buscando uma sociedade mais humana e fraterna.

Costumava contar uma história aos meus alunos sobre um incêndio na floresta. Enquanto o incêndio tomava conta de grande parte da mata, os animais corriam para se abrigar no rio e dali ficavam olhando o fogo destruir tudo. Ao contrário, um passarinho voava desesperadamente de um lado para o outro carregando no bico algumas gotinhas de água. Um leão que observava a situação disse ao passarinho que deixasse de ser bobo, que ele não conseguiria apagar o incêndio com apenas poucas gotinhas. O passarinho, sem parar com sua batalha, respondeu: "Não importa. Mesmo que eu não consiga, quero ter a certeza de que fiz o que pude."

Quero fazer a minha parte, expor minha opinião e ouvir versões diferentes para, juntos, chegarmos a uma conclusão. Quero ter a certeza do dever cumprido. Aí, sim, poder reconstruir minha vida.

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