sábado, 8 de junho de 2013

A demarcação de terras indígenas deve mudar? - Tendências/debates

folha de são paulo
DALMO DE ABREU DALLARI
TENDÊNCIAS/DEBATES
A demarcação de terras indígenas deve mudar?
NÃO
Demarcação já
A demarcação das áreas indígenas está expressamente prevista na Constituição e já foram há muito tempo estabelecidas as regras legais que devem ser observadas para esse fim.
A demarcação é extremamente importante para a efetivação da garantia dos direitos decorrentes da ocupação tradicional das terras pelos índios. Ela foi determinada pela Constituição de 1988, no artigo 67, no qual se diz que "a União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição". E pelo artigo 20, inciso XI, ficou estabelecido que são bens da União "as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios".
Assim, pois, considerando que a demarcação das áreas federais é função de caráter administrativo, inerente, portanto, às atribuições do Poder Executivo, é este que tem o poder e o dever de proceder à demarcação das áreas indígenas.
O procedimento para demarcação das áreas indígenas foi expressamente regulado pelo decreto nº 1.175 de 1996, não havendo necessidade de modificação dos critérios ali estabelecidos. Talvez sejam convenientes algumas mudanças sugeridas pela experiência, mas as atribuições fundamentais das demarcações devem ser mantidas, concentrando-se na Fundação Nacional do Índio (Funai) o comando dos processos demarcatórios.
São absurdas e contrárias à Constituição algumas tentativas de entregar a demarcação a órgãos constitucionalmente incompetentes e a outros absolutamente despreparados para a demarcação honesta.
Assim, por exemplo, está em curso no Congresso Nacional uma proposta de emenda constitucional, a PEC 215, que, contrariando a Constituição e com evidente má-fé, pretende transferir para o Legislativo a função de demarcar as áreas indígenas.
É evidente o absurdo dessa proposição: um órgão do Poder Legislativo teria a incumbência de executar uma tarefa que é, obviamente, de natureza administrativa e que, evidentemente, está incluída nos encargos que a Constituição atribuiu ao Poder Executivo.
A par disso, assinale-se que a demarcação é um procedimento técnico, que no tocante às áreas indígenas exige conhecimentos especializados e, em alguns casos, equipamento tecnológico sofisticado.
Com efeito, a par das dificuldades que muitas vezes são encontradas por causa das peculiaridades dos locais a serem percorridos pelos demarcadores, existe a necessidade de conhecimentos especializados sobre os índios.
Diz a Constituição, no artigo 231, parágrafo 1º, que os índios ocuparão as terras para vários fins, incluindo as atividades produtivas e as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários à reprodução física e cultural da comunidade indígena, "segundo seus usos, costumes e tradições".
Com base nessas diretrizes, é feito, primeiro, o reconhecimento da ocupação da área pelos índios, o que implica, entre outros aspectos, a constatação dos limites da ocupação. Em seguida, com fundamento nesses dados, é feita a demarcação.
Assim, pois, é inaceitável a pretensão de entregar a demarcação ao Poder Legislativo ou a órgãos do Executivo absolutamente despreparados, que não têm familiaridade com as peculiaridades e tradições das comunidades indígenas e suas formas de ocupação das terras para satisfação de suas necessidades.
Não existe qualquer motivo sério e respeitável para tirar da Funai um encargo que é inerente às razões de sua existência, sob o pretexto de melhorar a regulamentação. O que falta é dar à Funai os recursos necessários para que ela possa cumprir sua tarefa. E nada impede que os legítimos interessados participem do processo de demarcação, que é público e aberto a colaborações de boa-fé e bem fundamentadas.
    RICARDO BACHA
    TENDÊNCIAS/DEBATES
    A demarcação de terras indígenas deve mudar?
    SIM
    Funai, uma raposa no galinheiro
    Os atuais mecanismos do processo demarcatório da Funai devem ser modificados com urgência. O órgão padece de estrutura operacional e recursos orçamentários adequados, ficando à mercê de ONGs que lhe fornecem, além de ajuda financeira, uma forte sustentação ideológica, de resto altamente deslocada nesse período de globalização da economia.
    As ações da Funai têm gerado insegurança no campo, prejudicando um dos setores vitais da economia brasileira. Mesmo porque há imensas suspeitas de que os laudos antropológicos que amparam as decisões demarcatórias são anticientíficos e fraudulentos.
    O caso dos conflitos na fazenda Buriti é emblemático. Fui vice-presidente do Movimento pela Anistia e Direitos Humanos em Mato Grosso do Sul, lutei contra a ditadura e sonhei com a volta da ordem democrática no país. Enfrentei os arreganhos do Estado de exceção. Fui relator da constituinte estadual e comemorei o Estado democrático de Direito.
    Nesse aspecto, sinto-me frustrado porque jamais imaginei que pudesse um dia me sentir vítima dos instrumentos de liberdade que ajudei a conquistar.
    Não cabe mais na lógica do exercício da cidadania um órgão como a Funai, que formula, identifica e delimita áreas indígenas, julgando inclusive as contestações dos produtores, que devem ser apresentadas no prazo exíguo de 90 dias.
    A PEC 215, em tramitação no Congresso Nacional, por outro lado, não soluciona o fulcro dessa questão, embora tente criar um critério democrático de consulta num espaço que atualmente está vazio.
    A Funai tem todo o tempo do mundo disponível para elaborar seus relatórios antropológicos "técnico-científico", mas não admite que o contraditório seja estabelecido dentro das mesmas regras. Daí, a partir desse modelo, além da falta de transparência e autoritarismo, o estopim da crise é aceso, fomentando lutas desnecessárias.
    Nesse aspecto, a Funai tornou-se uma instituição obsoleta. A legislação que ampara e regulamenta suas ações tornou-se anacrônica porque ela não conduz à paz no campo e sim aos conflitos permanentes.
    Não há como um produtor de alimentos que tem a posse legal de suas terras, reconhecida pelo Estado, escriturada em cartório, mediante atos jurídicos perfeitos, aceitar que deva sair de suas terras, no bojo do qual ele é julgado pelo próprio órgão que o demanda juridicamente.
    Ora, o Estado democrático de Direito pressupõe garantias à posse legal da terra, rechaçando o esbulho e sua tomada pela força e violência.
    Quando invadiram a fazenda Buriti --propriedade de 302 hectares que minha família adquiriu em 1927-- e reagiram violentamente a uma ordem de reintegração de posse, queimando casas, roubando gado, matando animais, enfim, transformando-a em escombros, vi ali a esvair-se a história política da minha vida.
    Lamentei que isso tenha custado a vida de um brasileiro, o índio Oziel Gabriel, pois sei que aqueles que tombam numa luta inglória entregam o fardo da responsabilidade para os companheiros que permanecem na empreitada.
    Que esse conflito sirva para provocar uma inflexão no eixo político, alterando o papel da Funai na definição das políticas demarcatórias, estabelecendo critérios justos e objetivos na identificação das terras indígenas.
    Caso contrário, a raposa continuará tomando conta do galinheiro, e as galinhas continuarão sendo vítimas, sem poder reclamar para um governo que não ouve, não enxerga e prefere continuar tergiversando diante de tão grave questão.

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