domingo, 28 de julho de 2013

AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA » Confessando e espionando‏


Estado de MInas: 28/07/2013 


Penso se não haveria correlação entre confissão e espionagem.

Deve haver.

Vejam: enquanto se fala muito das espionagens americanas, a TV mostrou centenas de padres ouvindo, em campo aberto, os pecados de jovens e velhos. Ajoelhados atrás de um tapume, os pecadores vertiam em várias línguas suas mazelas nos ouvidos de sacerdotes sentados, ocultos, do outro lado.

Coisa mais medieval. Coisa mais psicanalítica. Coisa mais pós-moderna: todo mundo se confessando, como se não bastassem as confissões no Facebook, no Twitter, nos blogs, nos telefones e nas gritarias das ruas. Ou, ainda, como se não bastassem as revistas de fofoca que falam da vida íntima de (desconhecidos) famosos.

Ainda resta alguma coisa para confessar?

A confissão é um tipo de espionagem. Divina, dizem. Deus escuta, e não vai dizer para ninguém. Escuta, perdoa e a vida segue; o crente se levanta com a culpa descarregada no ombro do desvalido sacerdote, que, não tendo se casado, ouve histórias terríveis de sexo e traição. Deve ser uma tortura para o padre. Corrijo: uma chatura, pois os pecados não variam. A mesma lenga-lenga. O jeito é mandar rezar o padre-nosso e a ave-maria.

Os protestantes acham que não precisam dessa mediação. Falam direto com Deus. E ele está sempre pronto a perdoar. Então, a gente peca e pede perdão. E a vida continua.

Mas falei lá em cima de espionagem. E me explico. A confissão é uma espionagem divina. Mas há a espionagem terrena feita pelo governo americano. Americano, só, não! Todo mundo espiona: os russos, os chineses e o Google. Já escrevi aqui sobre o panóptico invertido: ou seja, os que estão presos inventaram um modo de nos prender e sequestrar cá fora. Somos todos espionados. Tanto os que estão dentro das grades quanto os que estão fora.

Vou dar aqui um testemunho. Fazer uma espécie de confissão. A espionagem terrena passou por modificações. Sabemos que Marco Polo foi à China espionar. Os primeiros navegantes que aportaram na América deixaram aqui os “língua” (degredados que aprendiam o idioma dos índios) para apreender seus segredos. Aquelas expedições “científicas” que ingleses, alemães e russos promoviam por nosso continente eram espionagem. E dá-lhe Rugendas, Von Martius, Humboldt e até o Alexandre Rodrigues Ferreira – esse português, no século 18, foi conferir a Amazônia em nome do rei.

E vamos ao meu testemunho. Como a CIA sabe, dirigi a Biblioteca Nacional entre 1991 e 1996. E naquele período, por duas vezes, ocorreram casos de espionagem. Mas de espionagem explícita, escancarada e espantosa. Estava eu posto em desassossego (como ocorre a quem ocupa cargo público), quando me informam que chegaram à BN várias caixas mandadas de presente pela embaixada americana. Intrigado, fui conferir. Pasmem! Os americanos haviam recolhido panfletos e manifestos de sindicatos, cordéis, exemplares de jornais marginais brasileiros dos anos 1960 e 1970, levado tudo para os EUA, copiado e estavam nos dando de presente os originais!

Um presentaço! E uma humilhação!

Eles sabiam mais de nossa história do que nós mesmos. Pior: isso ocorreu duas vezes. Pois de outra feita mandaram uma carga notável de material subversivo de que não tínhamos a menor ideia.

Você ainda está supreso, e lhe conto mais esta: estava eu na Índia, participando de um encontro internacional de diretores de bibliotecas nacionais. E me convidam para um jantar em que funcionária da embaixada americana me revela (naturalmente) que a famosa Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos mantinha cerca de 100 pessoas na Índia só para coletar impressos escritos nas vinte e tantas línguas locais…

Quer dizer: na Índia, no Brasil ou em qualquer lugar, eles estão de olho na gente.

Ninguém detém o poder se não fizer espionagem.

Nem Deus.

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