sábado, 13 de julho de 2013

Clássico de Cortázar é relançado aos 50

folha de são paulo
Obra maior de argentino, 'O Jogo da Amarelinha' ganha edição com cartas em que escritor fala sobre processo criativo
Romance, que segundo autor seria 'a crônica de uma loucura', precede celebrações pelos cem anos de seu nascimento
SYLVIA COLOMBODE BUENOS AIRES"Não é uma novela, mas sim um relato muito longo que definitivamente acabará sendo a crônica de uma loucura." Assim explicava Julio Cortázar (1914-1984) em uma carta a um amigo sobre seu romance "O Jogo da Amarelinha", enquanto o escrevia, em pleno verão europeu de 1960.
Aquela que seria sua principal obra, e uma das mais importantes do chamado "boom latino-americano", completa em 2013 exatos 50 anos de sua publicação.
Já em fevereiro de 2014 serão celebrados os cem anos do nascimento do autor. Entre uma efeméride e outra, o mercado editorial hispano-americano e os órgãos de cultura do governo argentino preparam uma série de exposições, relançamentos e reedições de suas principais obras.
É o caso da edição especial de "O Jogo da Amarelinha" que a Alfaguara argentina acaba de enviar às livrarias. Entre as novidades, contém as cartas de Cortázar que se referem ao "making of" do romance (e que incluem o texto mencionado acima).
No Brasil, também sairá uma edição comemorativa, pela Civilização Brasileira, acompanhada de outros relançamentos, como o de "Bestiário", desde 1960 fora de catálogo.
DEBATE
"O Jogo da Amarelinha" apresenta a história de um triângulo amoroso, mas não só. Se lido linearmente do capítulo 1 ao 56, trata-se de uma história. Se seguido de acordo com a leitura que propõe Cortázar, salteada a partir do capítulo 73, é outra.
"Os personagens não são o mais importante, e sim o rompimento com a estrutura e a relação com a linguagem. O livro é uma discussão sobre quantos mundos cabem na literatura, e sobre a literatura por si só", disse à Folha o editor espanhol Juan Cruz, um dos maiores especialistas em literatura hispano-americana.
Na Argentina, Cortázar tem tido sua obra reavaliada. Enquanto críticos como Damian Tabarovsky defendem que seu legado é superestimado, outros apontam o fato de ser central como referência para a produção contemporânea.
É comum que se faça um traçado direto de influências entre seu legado e o do escritor chileno Roberto Bolaño (1953-2003). "Assim como Cortázar, Bolaño rompeu com a estrutura narrativa e ofereceu uma alternativa a uma geração", diz Cruz.
O argentino, que nasceu na Bélgica e viveu em Paris, se identificava com "O Jogo da Amarelinha" mais do que com qualquer de suas obras.
"Há um gigantismo em Cortázar, que é físico. Como ele tinha uma síndrome hormonal que fazia com que não deixasse de crescer, por muito tempo em sua vida pareceu um adolescente. Assim é O Jogo da Amarelinha' também, um romance que, por sua forma aberta, interativa, não para de desenvolver-se", diz o editor brasileiro Sergio Molina.
Na Argentina, as comemorações alimentam um debate político. Como o autor era antiperonista convicto, a oposição ao governo kirchnerista o assume como alguém que hoje estaria a seu favor. Já os governistas apelam para seu lado de militante das causas esquerdistas latino-americanas, que incluiu um amplo apoio à Cuba revolucionária.
"É muito reducionista pensar Cortázar nesses termos. Sua importância, mais do que nada, é literária e cultural, nesse sentido é universal, vai muito além do debate argentino", diz o editor argentino Augusto Di Marco.
    OPINIÃO
    Livros que despertam paixão em jovens são os que mais têm sua memória vilipendiada
    SE CÉSAR AIRA DIZ QUE 'O JOGO DA AMARELINHA' É O PIOR DE CORTÁZAR, BOLAÑO NUNCA ESCONDEU SUA ADMIRAÇÃO PELO ROMANCE
    JOCA REINERS TERRONESPECIAL PARA A FOLHAA medida da rejeição de um livro amado na juventude é a mesma desse amor, só que ao contrário. Nós, que amávamos tanto "O Jogo da Amarelinha", hoje sabemos disso. Livros que despertam paixão no leitor imberbe são aqueles que mais têm sua memória vilipendiada.
    Os prelúdios do fim são idênticos aos do processo amoroso: aquela pálpebra desmaiada e a perninha torta que antes simbolizavam o cúmulo intransferível da beleza de repente passam a ser meros defeitos.
    O romance de Julio Cortázar reuniu três tipos de romances em um só: o romance existencialista francês (rapazes de sobretudos negros esvoaçantes sobre as pontes do Sena), também compreensível como "romance sobre Paris" (é todo um gênero literário, inaugurado por Baudelaire); romance dentro do romance (em meio à transa de Oliveira e Maga acontece a caça a um escritor desparecido, Morelli); e o romance de latino-americano exilado, cuja escola inaugurou.
    Esses romances são reunidos sob forma lúdica e experimental, que em seu momento correspondeu àqueles símbolos personalíssimos ali de cima (o olhinho caído, o coxear etc) e atualmente representam rugas e pés-de-galinha: a prova inconteste de que o livro envelheceu mal.
    "O melhor Cortázar é um Borges ruim", afirmou o escritor César Aira, abrindo a porta para que outros rejeitassem publicamente sua primeira namorada, a Maga. Quanta deselegância. Além de ressaltar que "O Jogo da Amarelinha" é o pior de Cortázar (o melhor seriam os contos), Aira também disse que o carinhoso ogro belga serve apenas aos "adolescentes que querem ser escritores".
    Sem dúvida, esse caráter iniciático ingressa o cinquentão ao restrito clube de livros da puberdade escritos por Boris Vian, J.D. Salinger, Jack Kerouac, Clarice Lispector, Fernando Sabino etc, servindo de base ao caçula da turma: Roberto Bolaño nunca escondeu sua admiração por "O Jogo da Amarelinha", e "Os Detetives Selvagens" --um romance experimental sobre latino-americanos exilados que esconde um romance sobre a caça a um escritor desaparecido-- a seu modo atesta a sobrevivência dos supostos erros de Cortázar, sua fé imóvel na contribuição inteligente e sensível do leitor para a conclusão do livro, na contribuição milionária de todos os erros.

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