quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Inácio Araujjo

FOLHA DE SÃO PAULO

Oshima mon amour
Com obra marcada por rupturas e erotismo, cineasta Nagisa Oshima, de 'O Império dos Sentidos', morre aos 80 anos no Japão
Argos Films/Oshima Productions/The Kobal Collection
Cena do filme "Império dos Sentidos" (1976), do cineasta Nagisa Oshima
Cena do filme "Império dos Sentidos" (1976), do cineasta Nagisa Oshima
INÁCIO ARAUJOCRÍTICO DA FOLHAHá 37 anos, em 1976, "O Império dos Sentidos" fez de Nagisa Oshima um cineasta popular em todo o mundo. O tórrido romance entre Sada e Kichizo surpreendeu espectadores e censores: como podia um filme ser "'sério" e "pornográfico" ao mesmo tempo?
O escândalo foi um ponto crucial na carreira do magistral cineasta, que morreu ontem de pneumonia, aos 80 anos, em Kanagawa, ao sul de Tóquio.
"O Império dos Sentidos" foi também o momento mais radical de uma carreira marcada pelo radicalismo. O filme lembra muito as ideias do francês Georges Bataille sobre a proximidade entre amor e morte. Mas não as ilustra. E havia outras ideias ali: esse amor existia em contraponto (quase oposição) ao militarismo japonês, que levaria o país à catástrofe na 2ª Guerra.
Oshima foi o primeiro nome da "nouvelle vague japonesa" a chamar a atenção mundial. Tratava-se de um grupo de jovens cineastas que, no começo dos anos 1960, rompeu com os estúdios japoneses, optando pela independência.
A divergência era tanto formal (resistiam aos estilos tradicionais) como política (condenavam o conformismo dos velhos mestres).
Logo nomes como Shohei Imamura ou Seijun Suzuki, entre outros, tornaram-se decisivos para o jovem cinema mundial de então.
O primeiro impacto veio de Oshima, com "O Túmulo do Sol", "Conto Cruel da Juventude" e "Noite e Névoa no Japão", três filmes de 1960 que fugiam ao estilo tradicional e traziam a juventude para o centro dos acontecimentos, embora feitos antes da ruptura com o poderoso estúdio Shochiku.
A maturidade de Oshima chegou no final dos anos 1960, quando produziu obras capitais, como "O Enforcamento", "Garoto Toshio" e "A Cerimônia", esta última de 1970. Todas afirmavam essa proximidade entre vida e morte que se tornaria explícita em "O Império dos Sentidos", mas, sobretudo, deixavam claro o inconformismo em relação aos rumos culturais e políticos dos Japão.
Na década de 1970 predominou o esforço para entender a sociedade nipônica e sua história. A mudança é visível em "O Império da Paixão" (1978). A fama mundial levou Oshima a produções internacionais que pouco acrescentaram a seu trabalho, como "Furyo, em Nome da Honra" (1982) e, em especial, "Max Mon Amour" (1986).
O fracasso deste último o levou a trabalhar para a televisão, antes da hemorragia cerebral de 1996, que o forçou a um longo período de recuperação. Oshima ainda pôde realizar em 1999 o pouco inspirado "Tabu", em que novamente buscava um tema polêmico: a homossexualidade entre samurais.
Desde então, o cineasta nascido em 1932 em Okayama recolheu-se: o que tinha a dizer, desde os tempos de estudante de direito com ideias de esquerda, em Kyoto, estava dito. E, diga-se, bem dito.

    ANÁLISE
    Diretor revolucionário queria produzir uma nova realidade
    LÚCIA NAGIBESPECIAL PARA A FOLHANagisa Oshima contou que certa vez um jornalista alemão "extremamente impertinente" lhe perguntou por que ele fazia cinema. A resposta que lhe ocorreu no momento foi: "Para entender o tipo de pessoa que eu sou".
    O jornalista retrucou que, se era só isso, ele podia fazer filmes em 8 mm, não precisava de formato scope e cor. Oshima então refletiu que o elemento constitutivo de seu cinema era o belo e que, para isso, ele precisava de cor, scope e muito mais.
    No meu entender, a verdadeira resposta está num parágrafo que ele escreveu num de seus muitos artigos: "O que os cineastas realmente querem é filmar a morte. E também filmar homens e mulheres (ou homens e homens, mulheres e mulheres, pessoas e animais) praticando o sexo".
    A obra desse maravilhoso e revolucionário diretor de cinema foi exatamente isto: filmar os extremos, o limite do cinema com a vida, e desta com a morte. Seu lema era transformar o cinema num modo de vida, que envolvia a equipe e os atores. Seus filmes tinham o intuito não apenas de reproduzir, mas de produzir uma nova realidade.
    E foi isso que sua obra-prima, "O Império dos Sentidos", alcançou: nunca mais a vida dos atores e técnicos que participaram dessa aventura de sexo e amor ao vivo seria a mesma, e o cinema erótico também se transformaria para sempre.
    Em meu livro "World Cinema and the Ethics of Realism" (cinema do mundo e a ética do realismo), chamei de "atitude ética" a escolha de Oshima de filmar de modo explícito a beleza do sexo extremo que culmina em morte.
    Seu compromisso com a verdade resumia o ideal de toda uma geração de cineastas interessados em explorar as propriedades transformadoras do cinema. Oshima foi o líder inconteste da chamada "nouvelle vague japonesa" nos anos 1960 e 1970.
    Porta-voz em seus abundantes escritos e aparições na mídia desse grupo revolucionário, teve a coragem de combater abertamente o tratado de segurança nipo-americano ("Conto Cruel da Juventude"), o stalinismo que penetrava o meio estudantil ("Noite e Névoa no Japão") e a discriminação dos coreanos ("O Enforcamento").
    E ninguém como ele soube representar o homossexualismo transbordante entre samurais e militares ("Tabu" e "Furyo: Em Nome da Honra").
    Seu ato mais ousado foi o de sexualizar a nação, transformado o círculo do Sol da bandeira japonesa em manchas vermelhas de sangue, ou negras de morte, às quais estudantes rebeldes ateiam fogo e nas quais casais incestuosos e estupradores se envolvem ("Maníaco à Luz do Dia", "Canções Lascivas do Japão", "Diário de um Ladrão de Shinjuku").
    Seus filmes eram destrutivos e autodestrutivos e, por isso, Oshima os comparava à fênix, que morre e renasce de suas próprias cinzas.
    LÚCIA NAGIB é professora de cinema na Universidade de Leeds (Inglaterra) e autora de "Nascido das Cinzas: Autor e Sujeito nos Filmes de Oshima" (Edusp).

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