domingo, 10 de fevereiro de 2013

AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA » O assassinato de Lincoln‏


Estado de Minas: 10/02/2013 
O filme de Spielberg poupa o espectador de ver e/ou discutir o assassinato de Lincoln. Foi uma opção de roteiro. Tratar da trama de sua morte seria não só outro filme, mas algo inconveniente aos EUA, onde vários presidentes foram assassinados. 

E realmente a vida de Lincoln tem tudo de uma tragédia grega. Consultei os três volumes da vida de Lincoln escritos pelo poeta Carl Sandburg, editados pela antiga Livraria Itatiaia (de Belo Horizonte), antes de ir à internet e encontrar a síntese histórica daquele atentado feita pelo professor gaúcho Voltaire Schilling.

A confirmação de que aquilo era uma tragédia começa dos dois lados. Do lado do assassino e do próprio Lincoln. Vejam: John Wilkes Booth, o criminoso, era um conhecido ator. Tinha o sentido teatral da vida. Preparou aquela encenação como se ensaia detalhadamente uma peça. Havia até representado Shakespeare. Não era um amador. Conhecia o Teatro Ford, e, ironia das ironias: Lincoln já o havia visto representar. 

Lincoln só não sabia que Booth havia ensaiado aquele trágico reality show. Na biografia que fez de Lincoln, Sandburg diz que um intruso fez, naquela tarde, antes do espetáculo, um pequeno orifício na porta do camarote para vigiar a vítima e decidir a hora do ataque. Coincidentemente, o guarda Parker resolveu sair para tomar uns tragos durante a representação. Tudo favorecia o assassino, que trazia o punhal na mão esquerda e, na outra, a pistola Derringer. Entrou no camarote subrepticiamente e atirou na nuca de Lincoln. O ator que estava no palco representando vê Lincoln reclinar a cabeça na sua poltrona de balanço. O major Rathbone pula sobre o assassino, mas recebe uma punhalada no peito. Diz Sandburg: “Como um ágil animal selvagem, o ator-assassino sobe no parapeito do camarote triunfante, mas sua perna se engastalha na bandeira americana e cai no palco onde lança para a plateia a frase de Brutus diante do cadáver de César: ‘sic semper tyrannis’ (Assim sucede sempre aos tiranos)”.

Tenta fugir para alcançar o cavalo que o espera. Morrerá pouco depois, num celeiro, sob balas de soldados. Mas aquilo era algo maior, um complô. Outros (que foram enforcados) tentaram matar o secretário de Estado e o vice-presidente, que sobreviveu (como no caso Kennedy, chamava-se Johnson).

De parte de Lincoln, a tragédia, há muito, estava também em curso. Não foi aquela a primeira tentativa de matá-lo. O filme de Spielberg relata um pesadelo de Lincoln (que Sandburg descreve em pormenores): depois de um dia exaustivo, sonhou que ouvia ruídos estranhos na Casa Branca. Saiu caminhando e gemidos o acompanhavam. Quando chegou ao Salão Oriental, a nefasta surpresa: um cadáver e soldados em torno. Quando perguntou o que havia ocorrido, lhe disseram que um assassino havia tirado a vida do presidente.

A senhora Lincoln, ao ouvir essa narrativa do marido, disse preferir que ele nunca a tivesse contado. O fato é que, de alguma maneira, Lincoln tinha o sentido trágico da vida. Sabia que não estava apenas numa guerra, mas era alvo permanente. Para escapar de atentados anteriores, teve que se disfarçar, cancelar compromissos.

Numa conversa com o assessor, foi claro: “Sabe, Cook, creio que há homens que querem tirar-me a vida. E não tenho dúvida alguma de que o conseguirão”.

Embora a história tenha seus momentos de comédia e festa, é sobretudo um drama, e, nos casos extremos, uma tragédia. Não há muita distância entre o camarote e o palco no teatro da vida. E Lincoln é um personagem trágico. Comunicava-se muito por párabolas e provérbios. Era um indivíduo excepcional, embora cometesse mazelas como os simples mortais. Mas há um provérbio entre os lenhadores que ele mesmo gostava de dizer e explica o fascínio crescente em torno de sua figura: a árvore se mede melhor depois de derrubada.

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