domingo, 10 de fevereiro de 2013

PELO NOME DO PAI » Um espaço na certidão. Um vazio no peito-Sandra Kiefer‏

PELO NOME DO PAI » Um espaço na certidão. Um vazio no peito 
Para quase 6 milhões de brasileiros, identidade paterna é um mistério que representa constrangimento no dia a dia e carência afetiva. Justiça intervém pelo reconhecimento 


Sandra Kiefer
Estado de Minas: 10/02/2013 
Na época das técnicas de fertilização in vitro, do casamento homossexual e da explosão de divórcios, o Brasil contemporâneo convive com um atraso que mantém quase 6 milhões de crianças e adolescentes registrados apenas em nome da mãe. São gerações e gerações de brasileiros com pais desconhecidos, que se sentem abandonados desde a certidão de nascimento. Sentimento que Luísa, de 21 anos, moradora do Bairro Anchieta, na Zona Sul de Belo Horizonte, expressa em detalhes que passariam despercebidos pela maioria das pessoas. “Morro de vergonha de mostrar a carteira de identidade na entrada das boates. Um dia esqueci o documento em cima da mesa e fiquei apavorada quando vi meus amigos xeretando. Quando me aproximei, percebi que comentavam sobre minha foto. Ufa! Ainda bem que ninguém teve a ideia de olhar o verso”, relata.

Em Belo Horizonte, uma iniciativa do Judiciário já conseguiu preencher esse vazio para mais da metade das crianças que passaram pelo processo de reconhecimento. Mas no país, o universo de brasileiros sem o registro de paternidade pode ser ainda maior. Todo ano, mais 700 mil bebês dão entrada nos cartórios com uma incógnita na certidão. “Pai é coisa rara no Brasil. No nosso país, a pessoa criada a vida toda por mãe e pai pode se considerar premiada. O fenômeno assusta”, afirma Gabriel da Silveira Matos, juiz auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça e integrante do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Ele cita síntese de pesquisa da Unesco, a ser publicada este ano, indicando que 70% das crianças nas favelas do Rio de Janeiro são sustentadas exclusivamente pelas mães. “Se assumiu a guarda do filho, a mãe tem de se responsabilizar por todos os aspectos, inclusive pelo direito da criança de conhecer o pai. A figura do pai é a responsável por impor limite na educação. Se o pai é omisso em casa, é ruim. Mas se ele nem existir no papel, é pior ainda e pode gerar revolta na fase da adolescência”, alerta o juiz.

Diante do alto número de registros com paternidade omitida no país, a Justiça decidiu intervir na realidade. Saiu em defesa do direito dessas pessos que, afinal, não pediram para nascer. Em dezembro, a corregedoria, órgão do CNJ, aprovou o Provimento 16, conjunto de regras para incentivar o reconhecimento da paternidade nas mais de 7 mil repartições de registro civil do Brasil. A partir de então, quando a mãe omite o nome do pai ao tirar a certidão, já sai do cartório intimada a prestar esclarecimentos. Na audiência perante o juiz da Vara de Registro Civil, é convencida da importância de informar o nome do pai. Ele também será chamado a comparecer, podendo pedir o teste de DNA para reconhecer a criança. 

Cabelos castanhos e olhos verdes, a bela Luísa, que aparece no início dessa reportagem, é fruto de um relacionamento da mãe, professora, com um empresário bem-sucedido de BH. Na ocasião, ao saber da gravidez, o pai exigiu o teste de DNA. Sentindo-se humilhada, a mulher afastou-se, levando a menina. “Nunca me faltou nada. Minha mãe e minha avó sempre deram conta de tudo. Minha carência é afetiva. Tento não pensar nisso, mas sinto como se tivesse um buraco no peito”, conta. E completa: “É como se todos os meus amigos tivessem pais maravilhosos, menos eu”.

RANCOR E ESTIGMA Não se engane, Luísa. Em 2009, o Censo Escolar relacionou 5,5 milhões de estudantes das escolas públicas no país sem registro paterno. O programa Bolsa-Escola também listou 3,3 milhões de fichas do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), que incluem crianças fora da idade escolar, com omissão do nome paterno. “É uma questão cultural. Muitas vezes, a mãe deixa de agir por falta de informação, falta de recursos para pagar as taxas de cartório ou rancor em relação ao pai da criança. Pensam que seria mais prejudicial ao filho apresentar um pai que pode estar preso, ter fugido para outro estado ou já estar casado”, exemplifica o juiz Gabriel da Silveira Matos, do CNJ.

Mas, mesmo que muita gente pense ou diga o contrário, nascer sem pai declarado no papel na maior parte das vezes cria um estigma. Ainda que a mãe garanta a sobrevivência do filho e uma terceira pessoa ocupe o lugar afetivo, a omissão da origem paterna traz constrangimento à maioria. “A reação vai de cada um, dependendo da criação. Há casos extremos, de pessoas que chegam a não frequentar a escola, não prestam serviço militar e até arranjam documentos falsos e passam a viver na clandestinidade. Entram para o mundo do crime”, alerta o desembargador Fernando Humberto dos Santos, juiz da Vara de Registro Civil de BH.


Fim de uma procura de 2 décadas

O cinegrafista Bruno Ocelli viveu até os 22 anos sem conhecer o pai, criado pela avó e pela mãe. Com a maioridade e as campanhas pelo reconhecimento da paternidade, decidiu buscar suas origens. A partir de referências da mãe, conseguiu encontrar M.M., de 74 anos, caixeiro viajante, casado e com cinco filhos. O pai disse não ter assumido Bruno por já ser comprometido na época. 

Intimado pela Justiça, o suposto pai esteve em audiência com o jovem e exigiu o teste de DNA, apesar da enorme semelhança física entre os dois. “Vim aqui na cara e na coragem. Ele pode não ser meu filho socialmente, mas é no coração”, garantiu. “É, ele tem uma boa lábia”, ironizou o rapaz, que reconhece ter herdado do pai o jeito namorador. 

Hoje aposentado, M.M. admite que a atividade de caixeiro viajante pode ter gerado outros três filhos de mães diferentes. “Na última vez que eu te vi, você estava a tiracolo com sua mãe. Conversei com ela e expliquei que não seria aconselhável levar o caso adiante”, diz ele ao jovem, enquanto os dois aguardam o resultado do exame. Ao serem novamente chamados, ambos saem sorridentes da saleta e até ensaiam um abraço. “Finalmente tenho um pai”, comemora Bruno, que conta estar formado e não precisar de ajuda financeira.

Casos mais emblemáticos são registrados em uma espécie de livro de ouro, elaborado por iniciativa de Cristiane Silva, conselheira do Centro de Reconhecimento de Paternidade (CRP), do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em Belo Horizonte. Ela anota as mais belas histórias, com o cuidado de preservar as identidades dos personagens. No livro, há relatos como o de um pai que viajou ao exterior em missão pelo Exército e ao  voltar apresentou-se espontaneamente para reconhecer a filha, de quase 2 anos. “Quando o DNA dá negativo, geralmente o candidato vai embora pulando de alegria. Não é o mais comum, mas também já presenciei homens em prantos ao descobrirem que o filho não é deles e acharem que tiveram a honra traída”, conta ela.


O PAPEL DO REGISTRO
Documento de maior valor na vida da criança, a certidão de nascimento representa:

– O nascimento do menor de idade para a vida civil.
– O registro de suas origens familiares (mãe, pai e avós).
– A identificação da sua origem genética
– Vínculo com o pai e familiares paternos
– Direito a pensão alimentícia
– Direito a herança
    
Possíveis consequências da omissão da figura paterna
– Sensação de abandono 
– Discriminação em relação aos colegas da escola e no emprego
– Falta do vínculo com eventuais irmãos, tios e primos
– Perda do direito a pensão alimentícia e herança

BH lidera em reconhecimento 
Pioneiro, centro dedicado a promover o encontro entre pais e filhos na capital mineira preencheu, só no ano passado, lacuna em 4.029 certidões e virou exemplo para o país 
Sandra Kiefer

Todos os dias, cerca de 200 mães recebem correspondência com convocação para que compareçam perante o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em Belo Horizonte. Essas intimadas nunca chegam sozinhas para a audiência no Centro de Reconhecimento de Paternidade (CRP), na Avenida Álvares Cabral, 200, quinto andar, no Centro da cidade. Seus acompanhantes costumam vir no colo ou de mãos dadas, dependendo da idade. São recebidos com carrinhos de plástico, casinha de bonecas e com a tevê ligada durante todo o tempo no canal de desenhos animados. O ambiente acolhedor em nada lembra os frios e imponentes palácios de granito da Justiça. 

Na recepção, as cadeiras de plástico são insuficientes nas manhãs de segunda-feira a quarta-feira, quando ocorrem as audiências com o juiz e as reuniões de conciliação entre os casais. “Ali está o fruto de um romance do carnaval passado”, aponta uma funcionária, discretamente. Sentados lado a lado, visivelmente desconfortáveis, estão homem e mulher, que mal se reconhecem. No meio, está o bebê de quase 1 ano, no colo da avó materna. O menino, com traços visivelmente semelhantes aos do provável pai, não parece se importar com a seriedade do momento. Tem o sorriso aberto e adora brincar. 

Pioneiro no país, o Centro de Reconhecimento de Paternidade de Belo Horizonte foi criado em agosto de 2010. É o único a oferecer testes de DNA gratuitos e o próprio sistema de informática, integrado a todos os cartórios da capital. Só no ano passado, foram abertos 7.377 pedidos de reconhecimento de paternidade. Destes, em 4.029 casos, ou seja, mais da metade (54%), as crianças já podem dizer o nome do seus pais biológicos. Do total, 2.247 pais aceitaram fazer o reconhecimento espontâneo. Dos 2.375 que exigiram o teste de DNA, 75% tiveram resultado positivo (1.782). 

Ao ser chamados a comparecer em audiência, mãe e pai já saem com o registro pronto, se houver consenso. Se o suposto pai exigir o DNA, são necessários 30 dias. “É muito rápido e a tramitação evita a necessidade de constituir advogado e pagar pelo teste de paternidade. Antes do CRP, muitas mães desistiam antes de tentar”, afirma o coordenador do centro, Bruno Campos da Cruz. 

Em BH, o processo está mais adiantado em relação às outras capitais. Começou em 2009, desde que o Censo Escolar apontou a existência de 43,7 mil estudantes de até 18 anos que não tinham pais conhecidos no estado. “Não era apenas uma estatística. Tratava-se de uma lista de quase 50 mil crianças e adolescentes, com o nome das mães e o endereço das casas onde moravam. Passamos a procurar essas pessoas por meio de cartas”, explica o juiz Fernando Humberto dos Santos, titular da Vara de Registros Públicos e desembargador aposentado do TJMG. 

Com o estímulo dos testes gratuitos de paternidade junto à Universidade Federal de Minas Gerais, obtidos por intermédio do então juiz da 3ª Vara de Família, Reinaldo Portanova, nascia o embrião do projeto “Pai presente: o reconhecimento que seu filho merece”. O juiz Fernando Humberto dos Santos foi a Brasília mostrar a iniciativa à então corregedora nacional, Eliana Calmon. Em 2010, a Corregedoria estendeu o Pai presente a todo o país, por meio do Provimento 12, determinando que os cartórios passassem a informar aos juízes os registros em que não constasse o nome do pai da criança. 

Registre que o filho é seu
Milhares de pais foram oficializados em 2012 pelo Centro de Reconhecimento de Paternidade de BH
Procedimentos abertos    7.377
Paternidades reconhecidas    4.029    54,6%
Reconhecimento espontâneo    2.247    30,5%
Procedimentos suspensos    1.101    14,9%
Pedidos de exame de DNA    2.375    32,1%
   – Positivos    1.782    75%
   – Negativos    593    25%
Fonte: TJMG

 


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