terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Diário de uma consumista em jejum

folha de são paulo

Repórter passa 15 dias sem ir às compras e conta como sobreviveu às crises de abstinência e a duas recaídas, uma delas ao comprar uma raquete de matar pernilongos
TETÉ MARTINHOCOLUNISTA DA FOLHAPrimeiro dia. No fim da tarde, estou fazendo hora para ir ao cinema quando uma caveirinha pisca para mim de uma vitrine. Uma, não, várias. Sorridentes e floridas, elas estampam duas nécessaires e um bloco de notas irresistível.
Não sendo exceção entre os admiradores da simpática figura, entro na loja, pergunto o preço, saco o cartão e arremato. Feliz da vida por resolver um problema que nem sabia que tinha: arranjar uma lembrança natalina legal e baratinha, ainda que atrasadíssima, para uma amiga.
Só me daria conta do mau passo depois do filme. No primeiro dos quinze dias em que me dispus a passar sem abrir a carteira (a não ser para comprar comida), a fim de viver uma experiência digna de ser contada aqui, escolho matar o tempo olhando vitrines, invento uma necessidade do além e falho miseravelmente, tudo sem perceber.
Por pior que ande minha memória, não costumo esquecer o que estou fazendo. Desconfortável, prego um post-it mental e retomo a missão.
Os dias seguintes transcorrem sem grandes dramas. Sublimar os impulsos mais malucos de consumo vem sendo um exercício constante (além de questão de sobrevivência) para minha endividada pessoa. Salvo surtos eventuais, alguns deles assustadores, tenho vencido.
Dado o contexto, chega a ser engraçado viver, por duas semanas, na ilusão de que poderia levar tudo o que vejo nas vitrines, mas que não o faço por obrigação profissional. Engraçado e chique.
Já das miudezas e pechinchas, sinto falta. Na impossibilidade de debelar meu consumismo, foi para elas que desviei o ímpeto. Como medida de controle de danos, não é ruim; às vezes, gastar R$ 0,25 em um carretel de linha de uma cor inspiradora pode ser suficiente para me mandar para casa feliz. Só de pensar que vou descer a pé a rua Teodoro Sampaio já me animo; mas lembro do serviço e meu coração afunda.
CRISE DE ABSTINÊNCIA
Um dia, chove inesperadamente e lamento não poder usar o pretexto para comprar uma sombrinha chinesa, mania inocente que me permito. Sim, elas se desintegram logo, mas custam R$ 7 e sempre há uma engraçadinha.
No outro, a caminho de um compromisso, passo por uma ponta de estoque que só por milagre poderia ter algo a oferecer e entro assim mesmo. Acho que nunca vou abrir mão do prazer idiota de examinar umas araras para adiar o batente -por cinco minutos que sejam.
Na segunda semana, começo a achar a vida meio parecida com o Second Life, aquele ambiente virtual onde você ficava comprando coisas para definir seu personagem. A digressão pseudofilosófica deve ser sintoma da síndrome de abstinência.
Outro: ao andar por uma rua crivada de tentações, de repente me engraço por tudo, incluindo coisas sobre as quais não tenho opinião formada. Decido: no primeiro dia livre dessa incumbência, volto para comprar a sandália anabela com salto de corda e o chapéu com fator UV.
Chega um sábado e, alegria, tenho que ir à feira. Meio confusa depois de tanta contenção, compro cenouras orgânicas em duas bancas e arremato mudas de erva-cidreira que, de fato, não são para comer. Na saída, quase caio na tentação de entrar na tenda de uma taróloga.
No caminho para casa, um ambulante no farol oferece uma raquete de fritar mosquitos. Lembro que a nossa pifou. A próxima coisa que sei é que a raquete está no banco traseiro, e eu falhei -de novo.
HÁBITO OU VÍCIO?
Começo a desconfiar do meu cérebro. Quando ele me enganou assim antes? O que é isso que se imiscui na vida, contra todas as deliberações em contrário? Que quando você vê, já fez? Lembro que isso se chama vício, ou hábito se você preferir um eufemismo. Lembro-me do que tive de entender para parar de fumar e vejo que tudo se aplica. Em especial, o fato de que um cérebro dependente de determinado estímulo fará de tudo para obtê-lo.
A recorrência exaustiva do impulso de comprar lembra muito o desejo de fumar de quem larga o cigarro. Não passa uma hora livre em que não me ocorra entrar numa farmácia, não ando um quarteirão sem me deter diante de uma vitrine, não vejo uma papelaria sem vasculhar uma lista mental de itens faltantes.
Mas eis que, assim como no caso do cigarro, resistir compensa. É o que percebo ao me colocar, de propósito, em situações-limite, como um magazine sortido na rua 25 de Março e uma Americanas Express, em Pinheiros (não, o Shopping JK não faria o truque; quando entro lá, minha cabeça se ajusta para o "modo museu", um estado contemplativo e desprovido de intenção de compra).
Já em lojas populares, me jogo. Na primeira, me interesso por sianinhas douradas, dúzias de isqueiros Bic (foram-se os cigarros, mas eles ficaram) e uma caixa de Lenços Presidente. Na segunda, há o DVD de "Bob Esponja - O Filme" (R$ 14,90), um clássico, e um conjunto baratíssimo de copos da Nadir Figueiredo. Mas aí você não compra e, ao pisar de volta na calçada, se dá conta de que nada daquilo faria diferença na vida. Ou quase nada.
Deve ser por isso que sites especializados em aconselhar consumistas compulsivos, como o americano "My Year Without Clothes Shopping", preconizam o jejum como ponto de partida para a mudança de hábito (veja à pág. 6).
Comprar é divertido e comprometedor, como todo vício, mas é mais difícil de combater do que a média. Não só não consideramos nosso hábito de consumo excessivo como agimos como se estivéssemos aqui para isso.
Lapsos à parte, o que o período de privação me mostrou é que parar é ter de prestar atenção. Isso é um começo para quem quer deter a compulsão. Se não para ajudar o Banco Central a conter a inflação, pelo menos para economizar seu dinheirinho. E, quem sabe, abrir espaço para outras experiências.
Já posso voltar à Teodoro para comprar meus copinhos?

    REGRAS DO JOGO
    O que era permitido comprar
    A repórter recebeu a incumbência de passar 15 dias sem comprar nada que não fosse comida. Foi aventada a ideia de limitar idas a restaurantes, mas um trabalho a obrigou a comer diariamente na rua. De 7 a 22 de janeiro, ela não fez compras ou contratou serviços. O relato inclui duas escapadas "quase" involuntárias.


    10 MANDAMENTOS PARA NÃO ENTRAR NO VERMELHO
    • Ajuste o consumo à necessidade, não à oferta (fuja de liquidações se não precisar de nada específico)
    • Não faça compras com cartão de crédito. Registre seus gastos
    • Descubra programas e prazeres que não envolvam compras e, quando bater a vontade de comprar, faça outra atividade
    • Livre-se da roupa que não cabe ou não agrada mais
    • Não compre por impulso. Faça uma pausa salvadora para pensar
    • Separe peças de roupa que mereçam reforma e mande arrumar
    • Examine o próprio guarda-roupa e pense em como usar as roupas que tem de formas diferentes
    • Descubra o que "dispara" sua vontade de comprar. Não compre para compensar tristeza, raiva ou frustração
    • Atenha-se a roupas, calçados e acessórios que combinem com seu corpo, estilo e atividades
    • Não compre nada que não achar absolutamente incrível

    Compulsivo precisa de cada vez mais para se sentir bem
    COLUNISTA DA FOLHAConsumir algo que se deseja ativa o sistema de recompensa, mecanismo cerebral ligado ao prazer. É viciante, já que produz uma sensação intensa rapidamente. Para o neurocientista Jorge Moll, do Instituto D'Or de Pesquisa e Ensino, porém, o que de fato incita o consumismo é a forma como o mercado renova continuamente seu arsenal de "recompensas".
    "Surge um estilo novo, associado à celebridade, ao sucesso e à saúde, e você quer se projetar nele. O consumo distrai as pessoas", afirma.
    O hábito vira doença quando se torna incontrolável e tem repercussões emocionais e financeiras negativas, incluindo dívidas e conflitos familiares. Embora se aproxime de quadros de dependência e de transtorno obsessivo-compulsivo, estudo recente da Faculdade de Medicina da USP o descreve como uma patologia específica, caracterizada pela dificuldade de controlar o impulso da compra.
    "O comprador compulsivo busca satisfação imediata para sua necessidade de aquisição, que é excessiva. Não consegue planejar ou pensar nas consequências", explica a psicóloga Tatiana Filomensky, autora do estudo que envolveu 85 entrevistas.
    Associado à busca de alívio para emoções negativas, o consumismo produz tolerância: é preciso comprar cada vez mais para obter cada vez menos efeito. "O compulsivo vive uma sensação devastadora de fracasso depois de comprar, exatamente como o dependente químico", afirma Filomensky.
    Segundo ela, alguns fatores influenciam o desenvolvimento do quadro, como predisposição genética, ambiente, problemas emocionais e padrões ensinados pela família. "O consumo é tão comum e estimulado que demora até percebermos um padrão patológico nos hábitos de compra de alguém", diz.

      O COMPRADOR SEM CONTROLE
      • Gasta dinheiro que não tem em coisas das quais não precisa
      • Tem urgência de comprar quando está deprimido, frustrado ou preocupado
      • Fica excitado ao comprar, mas a sensação logo dá lugar a culpa ou remorso
      • Compra coisas que não usa: mantém coisas embaladas e roupas com etiqueta
      • Mente para amigos e familiares sobre compras e esconde itens recém-adquiridos
      • Tem dívidas, mas não para de comprar
      • Seus gastos com consumo comprometem saúde financeira, relações e/ou planos

      Viciadas em compras tentam se curar com privação de consumo
      COLUNISTA DA FOLHAHá uma década, experiências de privação de consumo atiçam o debate sobre os limites do consumismo.
      Em 2004, a americana Judith Levine passou um ano comprando só comida depois de descobrir que tinha oito pares de tênis no closet e seis qualidades de arroz na despensa, entre muitas outras coisas. É o que conta no livro "Not Buying it -My Year Without Shopping" (algo como "não compre isso -meu ano sem ir às compras"), escrito em 2006.
      Em 2010, uma centena de mulheres americanas aceitaram o desafio do site "Six Items or Less" (seis artigos ou menos) e passaram um mês usando apenas seis peças de roupa.
      No blog "Um ano sem Zara", a publicitária brasileira Joanna Moura montava looks diários com peças que já tinha no armário, enquanto resistia a adquirir novas.
      A ex-compulsiva australiana Jill Chivers fez doze meses de jejum e transformou a experiência em método para curar dependentes da moda. Evitar cartões de crédito, examinar o próprio armário e adiar compras de impulso estão entre as estratégias sugeridas por ela e organizações como a Shopaholics Anonymous.

        ONDE PROCURAR AJUDA
        Devedores Anônimos www.devedoresanonimos-sp.com.br
        Programa de atendimento de compradores patológicos Universidade Federal de São Paulo. Tel. 0/xx/11/5579-1543 e www.unifesp.br/dpsiq/proad
        Ambulatório de transtornos do impulso Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo.
        Tel. 0/xx/11/2661-7805

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