sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Entrevista Elikia M'Bokolo

folha de são paulo

Guerra no Mali evidencia questões econômicas de novo imperialismo
PARA HISTORIADOR, DISCURSO HUMANITÁRIO DA FRANÇA MASCARA RAZÕES FINANCEIRAS
ELEONORA DE LUCENADE SÃO PAULOA intervenção francesa no Mali tem origem na disputa por riquezas minerais e na herança colonial da região. Fronteiras artificiais impostas pelas potências no século 19 fraturaram povos, gerando insatisfações.
A análise é do historiador Elikia M'Bokolo, 68, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais em Paris e professor da Universidade de Kinshasa (Congo). Ele vê um "novo imperialismo", no qual as potências europeias precisam lidar com o apetite de emergentes como a China.
Bokolo, congolês especializado em temas do pan-africanismo, diz que a crise no Mali pode se reproduzir com a mesma violência nos países vizinhos. Para ele, a guerra também é consequência da "estupidez do Ocidente" ao derrubar Muammar Gaddafi, ex-ditador da Líbia, em 2011.
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Folha - Como o sr. analisa a situação no Mali?
Elikia M'Bokolo - É fluida e incerta. A ação francesa é uma intervenção de uma antiga potência colonial. Tem uma imagem negativa para os africanos e malianos.
Quais as causas do conflito?
Há várias razões. A primeira é que essa região é muito instável, com uma população nômade. Esta teve um papel histórico muito importante no passado, fazendo as trocas entre a África negra e a África árabe, mediterrânea.
Com as fronteiras impostas no período colonial, a população se fracionou em muitos Estados. É um primeiro ponto de descontentamento. Essa população sonha em refazer uma junção territorial, com liberdade de movimento.
Quais são as outras razões?
Depois da colonização, o novo poder africano reteve a lógica territorial colonial. Toda essa população, considerada periférica e marginal pelas potências colonizadoras, hoje reivindica uma situação política e social melhor.
E há o apetite das potências capitalistas por essa região desértica. É sabido já há algum tempo que ela tem petróleo, gás natural, urânio.
Qual a razão mais importante?
O Ocidente enfatiza o lado étnico, religioso, de instabilidade. Nada fala sobre a economia, os recursos naturais. Esse é o lado importante. As grandes empresas francesas estão na África. A maior parte da eletricidade das centrais nucleares francesas é obtida com urânio africano.
A França fala da ação de radicais, da Al Qaeda. É ficção?
Não é tudo ficção. Mas no Mali o islã sempre foi moderado. Consumo de álcool, por exemplo, é permitido. O islã não é uma razão importante [do conflito], mesmo que haja muçulmanos cujo ponto de vista é extremista, da Al Qaeda ou de outros grupos. Não se pode transformar isso numa guerra cultural e religiosa.
A França diz haver ameaça.
A França tem posição ambígua sobre a África. Mesmo um presidente socialista como François Hollande adota esse discurso civilizatório, de que há risco, violação de direitos humanos. Tudo é discurso para a opinião pública. As questões são mais complexas. O governo francês joga em duas linhas: a ideológica, quase moral, e a econômica, em defesa de seus interesses.
A França tem o direito de intervir no Mali?
Não.
É certo considerar que há uma guerra imperialista em curso?
Sim. A África hoje é o continente que tem mais recursos naturais, e os países europeus querem essas riquezas.
E os chineses?
O grande medo do Ocidente é que eles ponham as mãos nesses recursos. Para que a China não esteja lá, uma série de práticas se multiplicam.
Uma delas são as intervenções chamadas de humanitárias. Há o estímulo a guerras civis, para que ocorram situações em que as empresas ocidentais possam usar esses recursos. A guerra econômica avança mascarada. Falamos todo dia de guerras étnicas, humanitárias. Mas as questões são econômicas.
É um novo imperialismo, no qual o velho imperialismo ocidental tem de lidar com o apetite dos emergentes.
Como é esse imperialismo, comparado ao do século 19?
No século 19, as potências não conheciam os recursos do subsolo. Hoje conhecem. Sua tática é dizer que a África em geral pertence ao Ocidente. E que a China -e depois Índia, Paquistão, Turquia, talvez o Brasil- não tem nada a ver com a África. Isso pode até desandar num conflito de caráter mundial entre a China e as velhas potências.
Isso seria possível?
Não acho imediatamente possível, mas não estou convencido de que é impossível.
O conflito está relacionado com a derrubada de Gaddafi?
O regime de Gaddafi representava um ponto de estabilidade na África do Norte, mas também era a passagem entre a África subsaariana e a mediterrânea. Derrubando Gaddafi e improvisando essa situação supostamente democrática -mas que não representa ninguém-, destruíram o Estado da Líbia.
As armas sofisticadas, os veículos militares estão nas mãos de grupos armados, que sabem que ninguém controla essa região há muito tempo.
A guerra do Mali é fruto do afundamento do regime de Gaddafi e da estupidez do Ocidente. O que se passa ali hoje pode se reproduzir amanhã com a mesma violência no Níger, na Mauritânia, e ninguém pode controlar isso.
Como reage a população?
A população do Mali é muçulmana e pratica um islamismo muito moderado. A presença dos tuaregues [nômades] nesse conflito é um risco extremamente grave. É particularmente sério o que já começou a ser visto em um certo número de vilas -há assassinatos de tuaregues. Isso pode se enraizar na região.
E a solução das armas não é a verdadeira. A solução é política, democrática: uma nova forma de Estado, descentralizado, para que a população dividida pelas fronteiras coloniais se organize e torne possível a integração.

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