sábado, 13 de abril de 2013

Brasil ainda dá samba? - Paulo Vilara‏

História da mais popular das artes brasileiras evidencia sua forte ligação com o contexto sociopolítico e aponta espaços de criação e resistência à margem dos períodos de opressão e da ditadura do mercado 


Paulo Vilara

Estado de Minas: 13/04/2013 

País de características multiculturais que se fundam já no século 16, quando da chegada de conquistadores europeus e, posteriormente, de africanos escravizados, nesses 513 anos de história vivida e narrada, o Brasil – com suas várias etnias e camadas sociais – experimentou diversas máscaras identitárias oficiais, uma vez que assumidas pela elite econômica e por seus governantes de então.

Sintetizado o percurso em saltos históricos, pode-se dizer que o país foi genocida em relação a nações indígenas que aqui habitavam; foi escravocrata; foi imperialista com povos de países vizinhos, matando milhares – como na Guerra do Paraguai – e anexando substanciosos nacos de terra ao seu já gigantesco território, caso do Acre, comprado à Bolívia; foi – continua sendo – explorado por outros países e por multinacionais em suas riquezas naturais; foi quase nazi-fascista na Segunda Guerra Mundial; foi desenvolvimentista com JK; encarou por 21 anos uma ditadura civil-militar; voltou à democracia em 1985.

Por baixo do tecido poroso dessa colcha de retalhos político-social, a vida das pessoas se organizou em conjunto de valores culturais e comportamentais marcados pelo tempo histórico, mas sempre um tanto à deriva dos discursos oficiais.

Mesmo perseguidos e massacrados, índios e negros continuaram a cantar e a dançar em seus “domínios”, mantendo vivas suas culturas e, dessa maneira, junto com portugueses e outros povos europeus (“brancos”), contribuíram para costurar a história e as particularidades da música no Brasil, popular e erudita – uma vez que compositores como Alberto Nepomuceno, Luciano Gallet, Villa-Lobos, Camargo Guarnieri e Francisco Mignone, entre outros, utilizaram registros do folclore em suas obras.

No livro O mistério do samba (1995), Hermano Vianna afirma que a mestiçagem e a mistura de classes sociais e culturas musicais é antiga no país. Segundo ele, os primeiros registros mais claros começam com a invenção e popularização da modinha e do lundu, no final do século 18, quando o Brasil ainda era colônia portuguesa. Vianna informa que o viajante Thomas Lindley narra, em livro lançado em 1802, como eram as festas em Salvador, naquela virada de século: “... em algumas casas de gente mais fina ocorriam reuniões elegantes, concertos familiares, bailes e jogos de cartas. Durante os banquetes e depois da mesa bebia-se vinho de modo fora do comum, e nas festas maiores apareciam guitarras e violinos, começando a cantoria. Mas pouco durava a música dos brancos, deixando lugar à sedutora dança dos negros, misto de coreografia africana e fandangos espanhóis e portugueses”.

Na segunda metade do século 19, o maxixe e o choro ocuparam os dançares e os ouvires de parte dos brasileiros. Em paralelo, manifestações populares como a literatura de cordel, o coco, a ciranda e o maracatu se exerciam tanto no interior quanto no litoral das regiões Norte e Nordeste do país.

Atuante como instrumentista, compositora e regente, Chiquinha Gonzaga foi, nesse período, exemplo de artista-cidadã, tendo participação ativa na luta pela libertação dos escravizados, o que aconteceu em 1888, e também pela proclamação da República, ocorrida em 1889.

Em 1897, nasce Alfredo da Rocha Viana, o Pixinguinha. Bem cedo, já em 1911, participou de gravações como instrumentista e em 1915 teve uma música sua gravada, o tango Dominante. Em 1926, gravou pela primeira vez um choro de sua autoria, Tapa buraco. Um dos gigantes da música brasileira.

Na segunda década do século 20 surge Noel Rosa, gênio do samba urbano e da canção popular. Entre 1930 e 1937, quando faleceu aos 26 anos, criou obra vasta (259 composições) e de altíssima qualidade musical e poética, marcada pelo tom coloquial que ainda hoje é referência para os compositores de canções. Um atento e refinado cronista do cotidiano.

Da década de 1920 em diante, a tecnologia de gravação de discos e a difusão de músicas e canções em larga escala, por meio das rádios, fizeram com que a presença da música popular crescesse exponencialmente e se alojasse no inconsciente coletivo do país, unindo-se naquele momento a uma ideia de brasilidade mestiça defendida, entre outros, por Gilberto Freyre em seu Casa-grande & senzala (1933).

Tudo novo Tornado símbolo da identidade nacional, em fins dos anos 1950 o samba passaria por grande transformação de estilo. Sob o governo (1956-1961) de Juscelino Kubitschek de Oliveira, que em seu Plano de Metas prometera desenvolver o país “50 anos em 5” (construiu Brasília em apenas três), nascia a bossa nova, com a diferenciada e inaugural batida rítmica de violão de João Gilberto e as inspiradas canções de Tom Jobim, com letras criativas e metalinguísticas escritas por Newton Mendonça (“fotografei você na minha Rolleyflex/ revelou-se a sua enorme ingratidão”) e por Vinicius de Moraes, este trazendo o seu prestígio de poeta moderno e homem culto para a esfera da canção popular.

A bossa nova foi sucesso imediato, nacional e internacional, especialmente a partir do célebre concerto ocorrido no Carnegie Hall, em Nova York, em 21/11/1962. Foram muitos os artistas que subiram ao palco: Sérgio Mendes Sexteto, Carmen Costa, Bola Sete, Sérgio Ricardo, Anna Lucia, Oscar Castro Neves Quarteto, Agostinho dos Santos, Luiz Bonfá, José Paulo, Milton Banana, Roberto Menescal, Carlos Lyra, Caetano Zamma, Chico Feitosa, Normando Santos, João Gilberto e Tom Jobim. Foi gravado um LP registrando a histórica noite, mas, curiosamente, Tom Jobim, um dos expoentes do evento, ficou de fora dele. Chama atenção o fato de que Johnny Alf, Sylvia Telles, Maurício Einhorn, João Donato e o Tamba Trio, pioneiros da bossa nova, não tenham participado do concerto.

O novo mostrava ser fenômeno mundial. Nos anos 1940 e 1950 a Itália viu surgir e exportou os filmes e o estilo cinematográfico do Neorrealismo; nos anos 1950 e 1960, na França, foi a vez da nouvelle vague – influenciada pelo neorrealismo; no Brasil, nos anos 1950 e 1960, além da bossa nova (e não por acaso JK foi apelidado de “presidente bossa- nova”), havia o cinema novo – também influenciado pelo neorrealismo. Tudo era novo por aqui e o Brasil parecia caminhar para o destino de grande nação moderna e apaziguada consigo mesma.

Viva a diferença
O anúncio do fim da canção cria uma dissonância com o movimentado cenário de novos artistas que exercem mesclas interessantes e abrem os ouvidos do país para o discurso que vem da margem
 



Paulo Vilara

Com o golpe civil-militar em 1964, com todas as suas consequências nefastas – especialmente na cultura e na educação –, o projeto de identidade nacional mudou radicalmente. Não havia mais clima para um barquinho e um violão nem para a garota que passava cheia de graça a caminho do mar. Os compositores de canções da MPB responderam de imediato à escuridão institucionalizada, produzindo também músicas de protesto.

Taiguara, Geraldo Vandré, Sérgio Ricardo, Carlos Lyra, Chico Buarque, Edu Lobo, João do Vale, Gonzaguinha e outros se empenharam na luta contra a censura. Os tropicalistas e os compositores ligados ao Clube da Esquina, aqueles carnavalizando, esses ressaltando a dor, fizeram a sua parte, conforme se pode ver em trechos de canções que, recolhidas no tempo, sugerem as mudanças que ocorriam na passagem da repressão extremada, com prisões, torturas, assassinatos e “desaparecimentos”, para a cognominada “distensão lenta e gradual” da ditadura civil-militar, regime político de exceção que chegaria ao fim em janeiro de 1985: “E eu digo não ao não/ E eu digo: É!/ Proibido proibir/ É proibido proibir/ É proibido proibir/ É proibido proibir/ É proibido proibir...” (É proibido proibir, de Caetano Veloso, 1968); “Carabinas, sorriso onde estou/ um compromisso a sirene chamou/ duplicatas, meu sorriso de humor/ se perdeu na cidade onde estou” (Viva Zapátria, de Sirlan e Murilo Antunes, 1972); “Você tem que ir embora/ já começa a amanhecer/ parece outro dia/ negro” (Caso você queira saber, de Beto Guedes e Márcio Borges, 1975); “Caminhemos pela noite com a esperança/ caminhemos pela noite com a juventude” (Credo, de Milton Nascimento e Fernando Brant, 1977); “O meu canto chuta o traseiro do ditador” (Bicho homem, de Milton Nascimento e Fernando Brant, 1980).

Com o término da ditadura civil-militar a música de protesto perdeu por completo seu sentido de ser. A canção popular se renovaria nos anos 1980 com a Vanguarda Paulistana (Itamar Assunção, Arrigo Barnabé, os grupos Rumo, Premeditando o Breque e Língua de Trapo); com o surgimento de bandas nacionais de rock; com o rap dos Racionais e outros; e, nos anos 1990, com o movimento mangue beat, cujo maior representante, Chico Science, faleceu em 1997.

Essas várias vertentes musicais se juntaram às anteriormente existentes, abriram caminhos que influenciaram jovens compositores e provaram que todas as experimentações eram possíveis: a Vanguarda Paulistana utilizou samba, pop, reggae, rock, raízes africanas, erudito contemporâneo, humor e canto falado; as letras das bandas de rock aproximaram o universo jovem do idioma nacional; o rap foi mais uma força poético-musical em língua portuguesa, criticando a sociedade, denunciando injustiças e exprimindo a vida dos jovens da periferia – em sua maioria, negros; e o mangue beat fez a mistura de tradicionais expressões da cultura musical pernambucana (maracatu, coco, ciranda) com manifestações internacionais, como o rap, o rock e a música eletrônica. Mais uma vez, novidades saborosas no cardápio das músicas populares brasileiras.

Morte da canção Embora na segunda metade do século 20 a canção brasileira tenha atingido o auge do reconhecimento de seu valor sociocultural, sucesso inegável de público e de crítica no país e no exterior, sua morte foi anunciada em 2004 por José Ramos Tinhorão, pesquisador e estudioso da cultura nacional, e por Chico Buarque, um dos mais respeitados compositores populares do Brasil. Tinhorão, em entrevista ao caderno Mais!, do jornal Folha de S. Paulo, em 29/8/2004, afirmou, categoricamente: “A canção acabou. (...) Acabou essa canção que nasce contemporânea do individualismo burguês, feita para você cantar e outras pessoas ouvirem se sentindo representadas na letra”. Quatro meses depois (26/12/2004), entrevistado em Paris para o caderno Ilustrada, do mesmo jornal, Chico Buarque diz: “Talvez tenha razão quem disse que a canção, como a conhecemos, é um fenômeno próprio do século passado, tal é a quantidade de releituras, de compilações, de relançamentos, de gente cantando clássicos – e isso no mundo inteiro. (...) A minha geração, que fez aquelas canções todas, com o tempo só aprimorou a qualidade da sua música. (...) Quando você vê um fenômeno como o rap, isso é de certa forma uma negação da canção, tal como a conhecemos. Talvez seja o sinal mais evidente de que a canção já foi, passou”.

Essa “morte” da canção provocou manifestação do Coletivo MPB – formado por compositores e pesquisadores da USP e da Unicamp –, que publicou na revista eletrônica Trópico o texto “A morte e a morte da canção”: “... a canção morreu duas vezes. A primeira morte foi política. A ditadura militar deixou bem claro em 1964 que o suave sonho bossa-novista tinha acabado e que a canção engajada do Centro Popular de Cultura, o CPC, não tinha mais lugar. (...) A segunda morte da canção aconteceu 40 anos depois e foi, aparentemente, de morte morrida. O legista a dar o laudo (...) foi ninguém menos que Chico Buarque. (...) Entre as duas mortes está justamente a consolidação da indústria cultural brasileira, como sistema integrado de indústria fonográfica, rádio, TV e jornal. Contudo, poesia cantada passou a não combinar mais com a face cada vez mais banal da indústria das mídias. O que se valorizou de certo momento em diante era a antítese do que havia até então: se veiculariam principalmente canções feitas para o esquecimento. O resultado foi devastador. (...) O que é preciso lembrar é que a consolidação da indústria cultural brasileira trouxe com ela uma segmentação do mercado que não pode ser evitada. Ainda mais, essa segmentação levou a uma segregação por parte dos setores dominantes da indústria daquela parcela da MPB comprometida com a conservação e renovação da tradição da canção. De modo que o problema hoje não é de atestado de óbito, mas de compreender o que significa essa segmentação e como é possível encontrar, na sua lógica, as brechas para intervir”.

Interessante notar que, embora tenha se passado menos de uma década desde a publicação do texto acima, não mais existe a nele citada grande indústria fonográfica, mas a análise prossegue válida, já que cada vez mais “canções são feitas para o esquecimento”, a segmentação de mercado está a cada dia mais aprofundada e a alegada segregação daqueles compositores que fizeram “aquelas canções todas” e que com o tempo aprimoraram “a qualidade da sua música”, é fato que faz pensar e merece ser debatido.

Margem e criação Se na segunda década do século 21 há algo a comemorar na música popular do Brasil, ele vem justamente dessa segmentação exacerbada, agora não apenas do “mercado”, mas principalmente de lugares à margem dele, distantes da indústria cultural e da mídia tradicional: há excelentes compositores e intérpretes se exercendo em circuitos alternativos, utilizando todos os canais de inserção, veiculação e difusão de suas obras na internet e nas redes sociais. Aos poucos ou mesmo repentinamente, conquistam ouvintes e espectadores, formam público, encontram aí “as brechas para intervir”.

Há de tudo nessa realidade cultural e, neste sentido, há espaço também para a canção “conforme a conhecemos” no século 20. Os septuagenários Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Edu Lobo, Marcos Vale, João Donato e outros continuam compondo, gravando e fazendo shows – com público, é bom que se afirme. Em Minas Gerais, especialmente, Milton Nascimento tem grande número de seguidores que o idolatram e constroem suas obras tendo nele – e nos demais compositores do Clube da Esquina – uma referência de qualidade musical, de inventividade e força na criação de melodias, harmonias e letras. Entre violonistas e guitarristas, Toninho Horta, respeitado em todo o mundo como um dos melhores instrumentistas, também é guia referencial de dezenas de músicos. Mas há indivíduos e grupos realizando outros tipos de composição e execução, alguns ligados ao chamado jazz mineiro, outros ao chorinho e ao samba, ao pop, ao rap, ao rock, e muitos se caracterizando por misturarem as diversas influências em sua música, sem rótulos fáceis de ser colados em suas caixas de instrumentos e malas de viagem.

Destaque-se a movimentação permanente que vem sendo promovida desde os anos 1980 nas periferias das grandes cidades brasileiras. Ali, os não bem nascidos, os ainda excluídos do banquete social estão se incluindo por conta própria, fazendo com que ouçam a sua voz, falando mais alto para si e para os outros.

Que assim continue. E que nesse imenso caldeirão musical que é o Brasil as identidades culturais, por múltiplas que sejam, consigam resistir à uniformização advinda da globalização e mantenham as diferenças locais, respeitando-se umas às outras com inteligência, sensibilidade e uma firme estratégia de sobrevivência que venha a ser útil e proveitosa para todos. Dessa maneira, creio que dá samba. E canção.

Paulo Vilara é autor dos livros Jazz! Interpretações – Pequenas histórias de fúria, dor e alegria (2011) e Palavras musicais – entrevistas com os compositores Fernando Brant, Márcio Borges, Murilo Antunes e Chico Amaral (2006).

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