sábado, 13 de abril de 2013

O mundo flutuante - José Castello


O Globo - 13/04/2013

O ROMANCE DE NAGAI KAFU ME LEVA A PENSAR EM OUTRO TERRITÓRIO MARGINAL: O DA ARTE E DA LITERATURA


Tenho um tio, Mário Guimarães,
que desapareceu. Se ainda estiver
vivo, terá seus 90 anos. Trabalhou,
durante longo tempo, no almoxarifado
de O GLOBO. Aposentouse.
Por motivos diversos, afastouse
de quase toda a família. Nunca se casou, ou —
que eu saiba — teve filhos. Um dia, no fim dos
anos 1970, simplesmente desapareceu. É uma
história antiga e turva. Meu pai lutou para encontrá-
lo. Fracassou. Seu desaparecimento, ainda
hoje, é um mito que perturba o espírito da família.
Fingimos aceitar a perda sem sentido. A
todos, porém, ela ainda esmaga um pouco.

Não me lembro por que razão contei essa história
durante uma oficina literária. Uma aluna
pediu a palavra. Seu pai também havia desaparecido.
Os anos se passaram. Depois de revirar
Curitiba em sua busca, a família decidiu que ele
estava morto. Só podia estar morto. Até que um
dia, o correio entregou na casa de minha aluna
uma caixa lacrada. Vinha sem o registro do remetente.
Minha aluna a abriu. Nela encontrou
os óculos de seu pai, o pente, os documentos de
identidade, fotografias pessoais, a carteira, o
chaveiro ainda com a chave da casa. Tudo o que
tinha de mais íntimo. Objetos que agora e enfim
ele devolvia, sem nenhum bilhete, nem uma palavra,
só para dizer que continuava vivo. Ou talvez
não: para enfatizar que não o esperassem
mais, que havia trocado sua vida por outra vida.
Que agora, para eles, estava definitivamente
morto.

Os dois episódios me voltam à mente enquanto
leio “Histórias da outra margem”, romance do
japonês Nagai Kafu (1879-1959), publicado pela
Estação Liberdade, com tradução de Andrei Cunha
e delicadas ilustrações originais de Shohachi
Kimura. Tento explicar a inesperada conexão.
O romance de Kafu é, na verdade, um relato
duplicado, isto é, uma história dentro de outra
história. Uma demonstração incontestável da
complexidade da ficção. Passa-se em Tóquio, algum
tempo depois do Grande Terremoto de
1923. Trata da vida de um homem solitário, Tadasu
Oe, que escreve um romance chamado justamente
“O desaparecimento”. Seu livro (o livro dentro
do livro de Nagai Kafu) conta a história de Junpei
Taneda, um cinquentão, pai de três filhos e
que vive um casamento infeliz — de conveniência
— com certa Mitsuko.
Um dia, Taneda também desaparece.
Assim Nagai Kafu resume
as circunstâncias: “Na primavera
de seus 50 anos, veio a
ordem da aposentadoria compulsória.
No dia em que foi buscar
o dinheiro da pensão, Taneda
não voltou para casa. Desapareceu
sem deixar traço”. Seu
personagem-escritor, Tadasu
Oe, o criador de Taneda, sabe,
porém, que, tempos antes, e por
acaso, o desaparecido conhecera uma mulher
chamada Sumiko, que trabalhava em um bar de
Komagata. “Taneda passara então a frequentá-lo
esporadicamente, para se embebedar de cerveja”.
Supõe Tadasu Oe — sem saber o motivo do desaparecimento
de seu personagem — que ele tenha
algo a ver com a mulher do bar.

Chega a decidir que, depois de receber a aposentadoria,
Taneda, com o dinheiro no bolso, dirigiu-
se ao bar de Komagata para se encontrar com
Sumito. Teriam passado a noite juntos — mas ele
parece não ter muita certeza disso. Só consegue
chegar até aí: nada mais sabe dizer a respeito do
sumiço de Taneda. “Daí em diante, ainda me falta
descobrir como continuar a história”, admite o escritor-
personagem. Admito
também eu: esse momento da
leitura produziu em minha
mente um pequeno golpe. Imediatamente,
revi o semblante
sombrio de meu Tio Mário, espantado
como o Rei Lear. Revi,
ainda, a face branca de minha
aluna enquanto relatava, aos
trancos, o desaparecimento de
seu pai. Muitos leitores não imaginam
os fatos imprevisíveis que
surgem durante as oficinas literárias.
A ficção tem o poder atordoante de arrastar
consigo memórias perdidas e recordações desagradáveis.
Ela é uma espécie de máquina que faz a
mente se mover — e não podemos controlar a direção.

O título do romance de Nagai Kafu, “Histórias
da outra margem”, não fala apenas na Tóquio marginal
— simbolizada pelo antigo bairro de
Yoshiwara, separado do resto da cidade por um
canal e ao qual só se tinha acesso através de uma
entrada, o Grande Portão. É o lendário bairro
dos bordéis, das gueixas e dos prazeres proibidos.
Desde a Idade Média, nos lembra Nagai Kafu,
passou a ser conhecido como “ukiyo” — isto
é, “mundo flutuante”. Mundo em que atracam
todas as coisas que a vida civilizada despreza e
quer esconder. Último esconderijo, onde a vida
se passa à meia luz e flutua sem destino. Mundo
dos objetos perdidos, que traz em seus fundamentos
a garantia de que eles jamais serão reencontrados.

O delicado romance de Nagai Kafu me leva a
pensar em outro território marginal: o da arte e
da literatura. Tudo aquilo que não pode se expressar
claramente emerge, de súbito, e só por
um breve instante, através delas. Tudo o que parece
expulso, ou perdido, nelas resiste. Não sei o
que minha aluna pensa a respeito — não a vejo
há muitos anos e sequer recordo seu nome. Ela
é, para mim também, um objeto (um ser) que
desapareceu e, no entanto, resiste em minha
memória não através de sua face, ou de seu nome,
mas da história que me relatou. Também
meu Tio Mário, ao sumir para sempre, parece ter
atravessado o Grande Portão de Yoshiwara, rumo
a um mundo inacessível, mais mentiroso,
mas também mais livre, que o real.

Penso que ambos — assim como Taneda, o
personagem de Tadasu Oe, por sua vez o personagem-
escritor de Nagai Kafu — perderam-se,
para sempre, na esfera longínqua da ficção. Como
chegar até ela? As pessoas costumam acreditar
que a ficção é “qualquer coisa”. Que a fantasia
é arbitrária, gratuita e prepotente. Esquecem-se,
assim, de seu elo misterioso com a memória.
Ficção não é memória — não é história, tampouco
confissão —, mas é algo que se passa, em parte,
só em parte, em sua esfera e sob seu comando.
Algo que transcorre em um limite, um “limite
flutuante” (como o “ukiyo” japonês), a que só
temos acesso através de um portão muito estreito.
É lá que o pai de minha aluna se perdeu. É por
lá que perambula, vivo ou morto, meu Tio Mário.
É lá que se escondem as melhores histórias
que temos para contar.

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