sábado, 4 de janeiro de 2014

ENTREVISTA Adélia Prado, poeta e escritora

A Tarde/BA 04/01/2014


“O que não
pode ser dito
é aquilo que
exige palavras
que nos faltam
e só os ouvidos
de Deus escutam
e entendem
e podem
responder
da forma que
nos liberte”


“BELEZA, PARA MIM, É A FACE DIVINA”




MARCOS DIAS

Desde que lançou Bagagem, em 1976, Adélia Prado, 78, marcou
sua presença na literatura brasileira de forma ímpar. Questões
como a religiosidade, o feminino e o cotidiano são tecidos em
linguagem poética única em sete livros de poesia e nove de prosa.
No mais recente, Miserere (Record), a escritora mineira traduzida
para o inglês, espanhol e italiano, expressa a força de quem sabe
quem é e como existe. É como se transcendência e imanência se
fundissem, num transe movido pelo desejo da escritora. "É escruciante
o amor, mas por nada no mundo trocarei sua pena", diz
ela, num verso do poema A Sempre-viva. A autora também celebra
uma nova inocência nesta fase da vida e, como raramente fez, se
autodefine: "Sou uma vestal sem mágoas". Nesta entrevista,
versos de poemas do novo livro revelam uma compreensão ampliada
de aspectos tratados em suas obras. Ela é alguém que pode
dizer: “Sentimos que fomos ouvidos porque a libertação é possível
e acontece. Estou no caminho. É como trocar o DNA que possuo pelo
verdadeiro”.

Há algum método que a leva a conceber as unidades que compõem seus livros? No caso de Miserere (Sarau, Miserere, Pomar e Aluvião), o que lhe orientou?

O que me orienta é ficar atenta
ao espírito, à unidade do
livro. É o que me fez descobrir
o lugar dos poemas,as partes
do organismo que ordeno segundo
os ‘temas’, os ‘climas’
dos grupos de poesia aos
quais sempre dou uma epígrafe.

A senhora também intitulou um poema como Miserere (no esplêndido Terra de Santa Cruz,
de 1988). Lá, havia um tom político (“vingança contra os donos do mundo”, “desejo que se fodam bem determinadas pessoas em suas empresas”), que está ausente no novo livro. O que mudou em sua relação com a dimensão social, já que ainda vivemos um tempo “cinzento e pegajoso”?

A arte, no caso a poesia, não
pode intencionar um resultado
político no sentido imediato.
Nada mudou desde
meu primeiro livro. A conotação
política de qualquer arte
nunca pode ser alvo ou
pretensão do autor. A casuística
deumpoema tanto pode
ser do cotidiano mais corriqueiro,
pode ser religiosa ou
política, mas só será suportável
se for rigorosamente
necessáriaàexpressão. Etem
que ser bela. Poesia, arte,
não tratam de enredos ou assuntos.
Arte é forma pura.

Miserere é um livro vigoroso, em que a senhora afirma: “Sou inocente, pois nem este grito é meu” (Pontuação). Passa pela coragem metafórica advinda de furar orelhas para usar brincos (Pingentes de Citrino), à afirmação de que “É Deus a poderosa morte” (O Hospedeiro). Chama o que vive agora de uma “nova inocência” (Aluvião). Como transformou o medo da morte (às vezes, “trinta vezes aumentado”) e a culpa?

O medo continua, de certa
forma mitigado, com mais
consciência, o que nos permite
também uma fé com
uma qualidade mais profunda,
aliviada de cadeias adquiridas
e herdadas. Quando
digo nova inocência não significa
ausência de culpa, mas
como no caso do medo, uma
culpa real mais fácil de ser
encarada e também redimida,
se temos fé.

Em O Que Pode Ser Dito há um profundo reconhecimento: “Ó Vós que me fizestes;/ Bendigo- Vos pela cruz/ da qual ainda viva me desprendes”. Sente-se liberta? O que não pode ser dito?

O que não pode ser dito é
aquilo que exige palavras
que nos faltam e só os ouvidos
de Deus escutam e entendem
e podem responder
da forma que nos liberte. Isto
acontece no âmago da consciência
individual. Sentimos
que fomos ouvidos porque a
libertação é possível e acontece.
Estou no caminho. É como
trocar o DNA que possuo
pelo verdadeiro.

O que lhe parece mais divino: mandamentos escritos na pedra ou uma página em branco na alma?

Os mandamentos de pedra
são apenas o registro do que
já está impresso na alma, o
que chamamos lei natural.Os
mandamentos são lembretes
e auxílio à nossa fraqueza.

Se Miserere fosse seu último livro (desejo que haja infinitos outros), pensa que tudo o que escreveu tendia para a compreensão e o sentido da vida que ele revela?

Na arte tudo é expressão do
que se vive, se experimenta,
se deseja, se busca. É sentimento
puro. E como arte é
Beleza e Beleza para mim é a
Face Divina, é natural que
uma obra de arte me dê pistas
do sentido da vida e me
leve a experiências mais profundas
de uma outra dimensão,
a dimensão da fé.

Num texto seu sobre poesia e filosofia (Observando as Formigas), a senhora entende que essas expressões são “como braços de um mesmo rio de nascente profunda”. E lastimava o horror de “todas, absolutamente todas” nossas faculdades não serem de filosofia. Em que conta tem a racionalidade e o inconsciente?

Talvez tenha dito que a filosofia
deve ser uma disciplina
que acompanhe a formação
acadêmica e isto desde o ensino fundamental.
Razão e inconsciente
são faces do Eu,
cara e coroa. Superestimá-los
ou subestimá-los será sempre
desastroso. O culto à razão como supremo recurso e
poder do homem nos dão as
guerras, as armas químicas,
as atômicas, a desatenção, a
indiferença, o egoísmo mais
atroz, os preconceitos. A balança
está desequilibrada. O
inconsciente, a alma, o espiritual
estão sinalizando perigo.

O que lhe impressionou na humanidade de Steve Jobs, eternizada no poema Lápide Para Steve Jobs?

Steve Jobs? Ele próprio, sua
vida. Fiquei tocada por ele e
sofri com sua morte. Não sei
muito porque amo Steve
Jobs.

A poesia contemporânea se expressa em muitos suportes que não apenas o livro. E como nas
artes visuais, muitos colocam determinadas obras em questão. Assim como a senhora sabe quando fez um poema (como diz em A Criatura, movida pela força do verso “dormir na própria cruz sem sobressaltos como um bebê brincando com suas fezes”), o que lhe diz o que não é um poema?

Há poemas que não têm poesia.
Quando ele causa estranhamento,
susto, beleza,
sensação de estar vendo algo
novo, a poesia está ali. Isto
vale para absolutamente
qualquer forma de arte.

Em A Paciência e Seus Limites e outros poemas do livro, é como se a senhora voltasse a tratar do desejo como algo que não está sujeito ao tempo. Com os anos, o que mudou na sua forma de entender o amor e o corpo?

Melhorei demais quanto à
forma de entender o corpo e
espero aprender muito mesmo,
se Deus quiser, porque
continuo com dezoito anos
incompletos.



PENTECOSTES

Moro em casa de
herança,
uma edificação com
aposento que evito
paralisada por seu
ar gelado.
Ocupo pequeno
cômodo
onde até virtudes,
algum riso
e sementes de
alegria, ainda
intactos,
guardam alguma
vida.
Olho o grande
portão sem me
mover,
o medo me tem ao
colo, o sorridente
demônio:
‘Você está muito
doente,
deixa que te cuido,
filhinha,
com os unguentos
do sono.’
Como um bicho
respirando perigo,
às profundezas de
que sou feita
rezo como quem vai
morrer,
salva-me, salva-me.
O zelo de um
espírito
até então duro e
sem meiguice
vem em meu
socorro e vem
amoroso.
Convalescente de
mim,
faço um carinho no
meu próprio sexo
e o nome desse
espírito é coragem.

MISERERE / ADÉLIA PRADO
Record
96 páginas / R$ 25 / www.record.
com.br

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