sábado, 4 de janeiro de 2014

Ficção e ciência - JOSÉ CASTELLO

O Globo 04/01/2014

ANA MIRANDA NÃO PRECISA “FAZER POESIA” PORQUE SABE QUE A POESIA É UM ELEMENTO ESSENCIAL DA REALIDADE

A articulação entre ficção e ciência
— o que é muito diferente de “ficção
cientifica” — tem um exemplo
valioso em “O peso da luz/ Einstein
no Ceará”, novo romance de
Ana Miranda (Armazém da Cultura,
Fortaleza). Não me refiro apenas aos conteúdos,
embora o livro de Ana tenha um forte fundo
científico. Tratam-se das memórias de Roselano
Rolim, personagem no qual a autora se inspira
em um tio apaixonado pela ciência. Inventor de
um moto-contínuo estelar, Roselano, no dia 29
de maio de 1919, teria acompanhado uma comissão
de cientistas que foi ao Ceará para observar
um eclipse total solar e, com isso, comprovar
a Teoria da Relatividade, de Albert Einstein.

Uma dedicada pesquisa — o que não é novidade
nas narrativas de Ana Miranda — sustenta
sua ficção. A ciência, em particular a física abstrata,
estão no centro da cena. O esforço da pesquisadora,
rigoroso e constante, se assemelha
ao do cientista. Mas tento falar de outra coisa. O
que mais impressiona em “O peso da luz” é o
modo como Ana mostra a aventura de Einstein
como uma verdadeira aventura poética. Já a epígrafe
do livro, assinada pelo próprio cientista,
resume esse vínculo: “A imaginação é mais importante
que o conhecimento”, nos diz Albert
Einstein. Eu ousaria reformulá-la assim: não
existe conhecimento sem imaginação, e tanto
Einstein, cientista de carne e osso, como o fictício
Roselano Rolim, são provas radicais disso.

Em uma entrevista sobre seu livro, Ana Miranda
o define: “É uma homenagem aos inventores em
todas as áreas, às utopias e às quimeras”. Um tributo
ao sonho, sem o qual o real não avança. Inspirou-
se em um tio, Inácio Nóbrega, inventor na década
de 1930 de um controle remoto. Cedeu o projeto
a um suposto cientista alemão, que prometeu
consagrá-lo, mas desapareceu. É também uma
homenagem ao Ceará, estado em que a escritora
nasceu, já que trata da comprovação da Teoria da
Relatividade realizada durante um eclipse do sol
observado, em 1919, por um cientista britânico e
outro alemão, na cidade de Sobral, interior do estado.
Desse modo, a ficção de Ana arranca grandes
nacos do real, sem pretender em qualquer momento
equiparar-se a um relato científico, ou fazer “ficção
científica”. É da fantasia na qual o real se encharca
que ela se alimenta. O mundo — mesmo suas
partes mais duras — também é feito de sonhos e
Ana sabe disso.

São capítulos curtos, bem a seu
estilo, e numa linguagem — apesar
das referências constantes à
ciência — bastante simples. Ana
é uma autora substantiva. Não
precisa “fazer poesia” porque sabe
que a poesia é um elemento
essencial da realidade. A poesia
está presente em um poeta amigo
do narrador, que o escolta como
um anjo e que o ajuda a aproximar
fantasia e descoberta. Aparece
ainda no papagaio Galileu, que viaja com Roselano,
e que é capaz de reproduzir não apenas suas palavras,
mas seus sentimentos mais secretos.

Mesmo para um sonhador como Roselano, mesmo
para um homem apaixonado pela ciência como
ele, os cientistas parecem, muitas vezes, um
bando de bruxos a remexer nos fundamentos do
real. Ele mesmo nos diz: “O que era o mundo da
ciência? Provavelmente uma comunidade de sujeitos
meio loucos, (...), ciumentos de seus avanços,
(...), movidos por uma vaidade incontrolável,
em jogos de ressentimentos, falando mal uns dos
outros, divididos em confrarias inabaláveis, discutindo
como nas reuniões de bruxas”. Essa visão
imaginária e mal-humorada da
ciência não só guarda sua parte
de verdade, como também nos
leva a pensar no lado fantasioso
que envolve as mais importantes
descobertas científicas. A
fantasia pode aparecer como inveja,
como ressentimento, como
competição desenfreada, mas
nada disso importa: ela está ali.

Para escrever seu romance,
Ana se baseou na visita real ao
Ceará de uma comissão composta
pelos cientistas Andrew Cromelin e Charles
Davidson que, no ano de 1919, comprovaram, observando
um eclipse solar, a célebre teoria de
Einstein. Inspira-se na realidade não para se conformar
com ela, ou para repeti-la, mas para dela
arrancar o que tem de ímpeto e risco. Cientistas
necessitam tanto da imaginação quanto ficcionistas.
Sem imaginação, não conseguiriam construir
suas hipóteses e sistemas — não conseguiriam
inventar. Sem ela, não poderiam de fato dar
saltos à frente. Desse modo, Ana nos mostra uma
surpreendente aproximação entre ficção — entre
poesia — e ciência. Poeta e cientista parecem andar
em extremos opostos. Parecem viver em
mundos distintos. De certo modo, isso é verdade.
Porém, sem a força da imaginação, sem o impulso
para a invenção, nenhum dos dois conseguiria
dar um só passo à frente.

Tal qual a fantasia, a realidade também é instável
e traiçoeira. No dia do célebre eclipse de
1919, relata Roselano, “para desespero de todos,
o céu se mantinha coberto de nuvens cúmulos,
cúmulos-nimbos e cirros-cúmulos. Não havia
uma só brecha em que se avistasse o azul celeste.
Senti-me envergonhado, como se eu mesmo fosse
um traidor”. Os observadores se acomodaram
no hipódromo. Instabilidade do real: às 7h10m, o
céu começou a abrir do lado nordeste, mas às
7h40m estava novamente “denso e escurecido”.
Às 8h25m, abriu-se uma brecha entre as nuvens,
mas logo o sol desapareceu, “reaparecendo por
alguns segundos às 8h38m”. Enfim, às 8h55m,
com o céu aberto, todos puderam observar sem
dificuldades o eclipse solar.

Também a ciência exige paciência — a mesma
exigida do escritor, que nunca sabe ao certo em
que momento a palavra adequada lhe surgirá.
Exige perseverança e disposição para a surpresa:
tanto na ficção, como na ciência, as coisas surgem
quando menos as esperamos. “Algumas
pessoas acenderam velas. Outras correram, dando
gritos de pavor. Nenhum pássaro cantava, revoadas
de morcegos surgiram de seus esconderijos,
como se fosse noite, dando rasantes sobre a
multidão”. É uma cena mágica, que envolve susto
e beleza. Que inclui encanto e atordoamento.
Também as descobertas da ciência estão envoltas
em beleza e surpresa. Também elas levam os
espíritos a se elevar, como se conectados com
um moto-contínuo que os ligasse às origens
mais remotas do próprio homem.

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