domingo, 3 de março de 2013

No fundo, somos todos bastante iguais - DORRIT HARAZIM


O Globo - 03/03/2013

O americano Dennis Rodman, popstar da Liga Americana de Basquete, e o norte-coreano Kim Jong-un são bípedes feitos para não se entender. Em menos de 48 horas, declararam-se amigos para sempre


Esta semana, duas figuras que
formam a dupla mais improvável
da atualidade roubaram a
cena do noticiário mundial —
ou, melhor, o que sobrou do noticiário,
já que a pompa e circunstância da despedida
do Papa foi de ofuscar qualquer
concorrência.

Segundo qualquer critério, o americano
Dennis Rodman, popstar de uma
geração de ouro da NBA, a Liga Americana
de Basquete, e o norte-coreano
Kim Jong-un são bípedes feitos para
não se entender. Um é ala aposentado
das quadras, o outro é ditador em ascensão.
Em menos de 48 horas, declararam-
se amigos para sempre.

Foi um Rodman bastante despojado
que desembarcou na segunda-feira
no aeroporto de Pyongyang, a capital
do país mais fechado do mundo.
Não fosse pela echarpe rosa-chiclete,
estava vestido com sobriedade. Não
ostentava nenhuma de suas tinturas
de cabelo preferidas — vermelhofúcsia,
amarelo-limão, verde-canarinho,
azul-cobalto. Portava apenas
seus dois fulgurantes piercings nas
narinas e os da parte externa dos lábios,
além da penca de adereços nas
orelhas. Para ele, o básico.

Rodman, de 52 anos e sólida reputação
de bad boy, foi um dos primeiros
atletas da NBA a ter tatuagens pelo
corpo inteiro e autodefinir-se como
bissexual. Traz no currículo um radioativo
namoro com Madonna. Mas
nem os socos que desferiu contra juízes
e eventuais chutes na virilha de
fotógrafos conseguiram ofuscar seu
talento em quadra. Foram cinco títulos
de campeão, três deles pelo Chicago
Bulls de Michael Jordan, e sete prêmios
de melhor jogador nos rebotes
— o bastante para lhe abrir as portas
da nação mais isolada e impenetrável
do mundo.

Seu jovem anfitrião, o ditador principiante
Kim Jong-un, herdou do pai
ditador sênior não apenas o país, mas
também a paixão pelo basquete. Não
qualquer basquete — só o americano.
E um ídolo, o camisa 23 do Chicago
Bulls. Há relatos de que o Querido Líder,
como era chamado Kim Jong-il,
morto em 2011, tinha em sua volumosa
videoteca quase todos os jogos
da era Jordan.

Uma das peças de maior destaque
no Museu do Entendimento Internacional
em Pyongyang é justamente
uma bola de basquete da NBA autografada
por Jordan. Está acondicionada
numa urna de vidro, em meio aos
mais de 50 mil presentes oficiais ali
expostos. Cortesia da astuta Madeleine
Albright, secretária de Estado do
governo Bill Clinton, que em 2000 fez
uma inédita visita oficial à Coreia do
Norte. Os dois países não têm relações
diplomáticas desde que lutaram
em lados opostos numa guerra inconclusa
(1950-1953) que se encerrou
com trégua, mas sem acordo de paz.
Vivem às turras, com picos de hostilidade
a cada novo teste nuclear subterrâneo
realizado pelo regime de
Pyongyang.

Dennis Rodman não é Michael Jordan
nem sua presença em Pyongyang
tem o mais remoto aval do governo de
Barack Obama. Trata-se de uma operação
essencialmente comercial: o ala
aposentado integra uma equipe dos
Harlem Globetrotters que participa
das filmagens de uma série sobre basquete
para o canal HBO. Os Globetrotters
existem há quase 90 anos, são
uma espécie de embaixadores da Boa
Vontade, e já fizeram apresentações
em 122 países ao longo de sua história.
Onde atuam, costumam fazer rir adultos
e crianças com exibições acrobáticas
e aparência extravagante.

Na Coreia do Norte, o impacto foi
de uma chegada de extraterrestres.
Afinal, trata-se de um país em que os
homens são proibidos de deixar à
mostra qualquer pelo facial e onde
até recentemente eram permitidos
apenas 10 tipos de cortes de cabelo. A
população impregnada pelo ideal de
pureza racial ficou estarrecida com
aquelas figuras caleidoscópicas, de
vastas cabeleiras afro e roupas gritantes,
que ao mesmo tempo eram simpáticos,
solícitos e brincalhões.

Sentados lado a lado na arena onde
jogadores da casa e Globetrotters disputavam
uma partida mista, Kim
Jong-un e Dennis Rodman pareciam
se divertir. Entenderam-se em inglês,
o jogo terminou em diplomático empate
de 110 a 110 e seguiu-se um jantar
épico de dez pratos e intermináveis
brindes no palácio do governo.

“Toda criança norte-coreana é alimentada
de antiamericanismo desde
o berço, mas pode gostar de basquete
americano quanto quiser”, espantouse
Shane Smith, o produtor da filmagem
em curso. Mais de quatro décadas
atrás, Zhuang Zedong, um jovem
chinês que participava do 31º Campeonato
Mundial de Pingue-Pongue em
Nagoya, no Japão, passou por espanto
semelhante. Um competidor dos Estados
Unidos entrara por engano no
ônibus reservado à equipe chinesa,
deixando todos petrificados. Zhuang
estava sentado na última fileira. “Cresci
ouvindo o slogan Abaixo o imperialismo
americano. Não sabia se era certo
ter qualquer contato com nosso inimigo
número 1”, contaria depois. Hesitou
por 10 minutos antes de se levantar,
cumprimentar o forasteiro e lhe
ofereceu uma paisagem pintada em
seda. Foi o início da chamada diplomacia
do pingue-pongue. Dez meses
depois, o presidente Richard Nixon
desembarcava em Pequim, abrindo
caminho para o reatamento de relações
diplomáticas plenas em 1979.
Zhuang morreu três semanas atrás.

Nada indica que um degelo semelhante
possa decorrer do pouso surpresa
dos Globetrotters em
Pyongyang. Mas um resultado a visita
já produziu. Ficou provado que o novo
serviço de telefonia móvel G-3 da
Coreia do Norte está funcionando,
permitindo aos fãs de Rodman seguilo
em tempo real. “Não sou político.
Kim Jong-un & povo da Coreia do
Norte são fãs de basquete. Amo todos.
Ponto. Fim de papo”, postou num de
seus primeiros tuítes.

O estilo pode ser diferente, mas a
essência do comentário lembra a
constatação feita quase meio século
atrás por um dos americanos da “diplomacia
do pingue-pongue”: “O povo,
lá, é igual a nós. Fiz amigos. O país
é parecido com a América, só que
muito diferente.”

No fundo, somos todos bastante
iguais. 

Dorrit Harazim é jornalista

Nenhum comentário:

Postar um comentário