domingo, 30 de junho de 2013

A Bíblia - Bertold Brecht - A primeira peça do dramaturgo alemão

folha de são paulo
Imaginação
BERTOLT BRECHTTRADUÇÃO TERCIO REDONDORESUMO Brecht tinha 15 anos e assinava Bertold Eugen quando escreveu este "drama em um único ato", que só estreou nos palcos neste ano, em montagem de Johanna Schall, sua neta. O texto, traduzido especialmente para a "Ilustríssima", aborda o tema do sacrifício, com pano de fundo de uma guerra entre católicos e protestantes.
Personagens
O avô
O pai, prefeito da cidade
A moça
O irmão
O drama se desenrola na Holanda, numa cidade protestante sitiada por católicos.
CENA 1
Uma confortável sala de estar de uma casa no largo do mercado, com uma sacada fechada, dotada de uma janela de friso com motivos florais. O avô lê sentado à mesa, a moça está na sacada. De vez em quando ouve-se um estrondo longínquo e impreciso.
AVÔ lendo em voz alta e com solenidade: Por volta da hora nona clamou Jesus em alta voz, dizendo: "Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?". E depois de algum tempo aqueles que o rodeavam passaram a escarnecer e diziam: "Salvou os outros, a si mesmo não pode salvar-se. Desce da cruz e creremos em ti." Então Jesus bradou novamente: "Está consumado"; e inclinou a cabeça e expirou.
MOÇA O ar está muito abafado, não se vê ninguém na rua. Tenho medo.
AVÔ Os cidadãos estão sobre as muralhas, menina. Por isso as ruas estão tão vazias. Você não precisa ter medo de nada.
MOÇA Acho que em breve começa o assalto. Mas não é isso que temo.
AVÔ não responde e folheia a Bíblia.
MOÇA Não sei de onde vem o medo. Começou apenas hoje de manhã. Desde que o pai e o mano saíram. O mano me olhou de modo tão estranho. Disse, como se perguntasse: "Hoje veremos. Será difícil conter o assalto. Nós nos sacrificamos de boa vontade". Salientou o "nós". Essa fala não é importante,mas não sai de minha cabeça. E então, subitamente, o medo volta. Não sei por quê.
AVÔ Bobagem! Eles já saíram tantas vezes. Acabam sempre por voltar. Jamais notei algum receio em você.
MOÇA como que paralisada: Sei que já saíram muitas vezes e que nunca fiquei preocupada.
AVÔ Hoje é um duro dia. O inimigo vai investir contra a cidade. Estamos aqui e não podemos ajudar. Podemos tão somente pedir o auxílio divino. Oremos! Busquemos consolo na Bíblia.
MOÇA olhando pela janela: Hoje está abafado.
Silêncio.
AVÔ Quando surgirem esses sinais, fugi para os montes! Sede fiéis e perseverantes, pois disso dependem muitas coisas!
MOÇA com o olhar no horizonte: Conte-me outra coisa, avô! Sua Bíblia é fria. Ela fala de pessoas que eram mais fortes do que nós.
AVÔ Menina, não peque!... lê: Eu porém vos digo, servi a vosso próximo! Reparti o pão com o faminto e apiedai-vos dos que têm necessidade. Folheia o livro.
MOÇA estranha: Conte outra coisa! Sua Bíblia é fria. Fale de privação e morte, mas também do auxílio divino. Conte algo do Deus bom e salvador. Sua Bíblia conhece apenas o Deus que castiga!
AVÔ Quem ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim não é digno de mim. - Este livro é tão belo. E é belo porque é forte. As pessoas deveriam lê-lo mais vezes.
MOÇA põe-se a escutar: Ouço passos na escada. São passos pesados e tristes. Aquele que assim caminha há de ser um homem velho e desafortunado. Ou então o seu fardo é que é muito pesado. Vou ver... vai até a porta.
AVÔ em voz baixa: Acho que conheço esse que tem os passos tão pesados.
CENA 2
O prefeito entra com o filho. É um homem grande e imponente. O irmão abraça a jovem, impetuoso.
IRMÃO gracejando: Menina! Que dia formoso! Chovem granadas. Sério: Mas cumprimos com todos os nossos deveres.
Silêncio.
MOÇA Como estão as coisas lá fora, pai? Vocês estão tão calados e sérios. Elas certamente não estão bem.
PAI falando devagar e olhando fixamente para a moça: A situação está ruim, menina. - Atormentado: Pela manhã, já sabíamos que não podia durar muito.
AVÔ calmo: Também o sabíamos.
PAI Nada dissemos a vocês. Não queríamos alarmá-los. Mas agora é preciso dizê-lo. - Conte você, meu filho!
IRMÃO hesitante: Não há muito que contar. As defesas foram destroçadas pelos tiros, estão furadas feito uma peneira. Trabalhamos dia e noite para sustentá-las. Em vão. - A fome campeia na cidade. Vocês não sabem de nada disso, mas no bairro de baixo as pessoas estão morrendo.
MOÇA É preciso alimentá-las. Meu Deus! Temos fartura, e as pessoas morrem.
PAI Não há como ajudar. Há gente demais. Você iria apenas cavar a própria sepultura.
IRMÃO A fome campeia na cidade. As pessoas estão exaustas. Mal se mantêm de pé. E hoje, logo mais, às três horas, começa o grande assalto. Os católicos irão atacar. Não teremos como nos defender.
AVÔ erguendo-se: Temos de nos defender! Vida ou morte! Todos devem subir às muralhas. Devem lutar e morrer por sua fé. Professai-a, diz o Senhor.
IRMÃO com desdém: Professai-a! Ha ha! Sabe, avô, é fácil sustentar a fé quando estamos de barriga cheia, em tempos de paz e na sala acolhedora. A vitória está fora de cogitação! Os católicos venceram no campo. Nós, a última cidade protestante, ainda resistimos. Mas o inimigo vai entrar. Vocês bem podem imaginar o que irá acontecer. O destino de outras cidades já o diz. As mulheres e as crianças serão... e agora... que dizer? Pai, não posso continuar...
MOÇA O que é? Por que me olham tão assombrados?
Silêncio.
PAI cansado: Acaba de chegar um mensageiro, vindo do acampamento inimigo... Oh, Deus.
MOÇA vai até ele: Diga, pai! Queremos ouvir tudo.
PAI recua diante do abraço, murmura: Agora não!... Prossegue, então, exausto, de modo arrastado e indiferente: Oh, Deus! É preciso dizê-lo. O mensageiro disse que... os católicos perdoam a cidade... se seus habitantes se tornarem católicos e...
AVÔ aos gritos: Nada disso! Não continue! Lutaremos até a morte!
PAI E se... uma jovem se sacrificar... ao comandante das tropas inimigas... por uma noite... aparvalhado: Você, menina!
Silêncio. Então a jovem dá um grito terrível e ameaça investir contra o pai. Começa a chorar convulsivamente...
MOÇA Eu!... Eu devo me sacrificar... Oh, Deus... Oh, Deus!
PAI recua sombrio: Deixe-me, deixe-me!... Está decidido. Afasta-se mais e esconde o rosto nas mãos.
AVÔ furioso: Responda, menina!
MOÇA confusa: O quê?... O quê?... Oh... minha cabeça... Gritando encolerizada: Isso não faço! Isso não faço! Não posso. Põe-se de joelhos diante do avô.
PAI chorando: Eu sabia.
IRMÃO severo, segurando a jovem pelos ombros: Menina! É sua obrigação! Um povo clama pelo sacrifício!
AVÔ Vá embora! Demônio tentador!
IRMÃO em atitude de escárnio, proveniente do desespero: Tentador! Ha ha! Agora desaparece a cortesia! Quando é da vida que se trata! - Menina, estou dizendo que é sua obrigação! Em voz baixa, quase implorando: Irmã! Você irá salvar um povo! Um povo! Salvará seus parentes. Seu pai! Seu avô! Sigam-me! Ao porão, à rua.
AVÔ Ela não vai me salvar! Fico aqui.
IRMÃO furioso: Por Deus! Você não me ouviu? Menina! Avô, fale com ela, diga a ela que é preciso!
AVÔ Não! Ela não tem de fazer isso! Ouçam vocês, ela não tem de fazer isso; uma alma vale mais que mil corpos!
IRMÃO furioso: Cale-se, imbecil! Sim, você é um imbecil! Ou então é cruel! Mais cruel que Acabe. Lá fora as pessoas gritam e você não as ouve, as chamas ardem e você não as vê, meu avô. Quando chegar o dia do Juízo Final, como se apresentará diante dele?
AVÔ inflexível: Como um justo! Digo a você: como um justo!
IRMÃO desatando a rir: Como um justo! Pois persevere em sua loucura! Em sua obstinada justiça! Ha ha! Interrompe-se subitamente, pois o relógio bate duas vezes: Já são duas e meia! Menina! Venha! Às três termina o prazo; e então inicia-se o assalto! Menina, tenha misericórdia das milhares de pessoas!
MOÇA : Pai, você também quer que eu o faça?
PAI cala-se.
IRMÃO É claro que ele quer. Pai, diga que você quer... Seguramente ele quer! Venha, menina!
MOÇA Vou!
AVÔ detendo-a: Fique! Acaso não conhece a palavra de Deus? "Aquele que me negar diante dos homens, também eu o negarei diante de meu pai que está nos céus!" Menina, menina! Sua alma não vale mais que os corpos de milhares? Verdadeiramente, diz o Senhor, quem ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim, não é digno de mim. - Você tem de ser firme; pense em sua alma.
IRMÃO Cale-se, velho imbecil! Cale-se com sua Bíblia, que é tão fria e justa quanto você. Siga seu coração, menina! Não é belo sofrer por milhares? Venha... rápido!

MOÇA Não... não... Vá embora... O avô tem razão. Vá embora...
IRMÃO ensandecido, sacudindo-a: É sua obrigação, menina, sua obrigação!
PAI Deixe-a! Não a force!
IRMÃO Frouxo! É a obrigação dela!
PAI Rapaz! Deixe-a! Estou mandando! Basta. Você vem comigo.
Puxa-o até a porta.
IRMÃO Cuidem de si mesmos! Ha ha ha!
Saem os dois. O pai retorna. Diz abatido:
PAI Pelo menos venham conosco e salvem-se... Uma granada pode atingir a casa, que se incendiará... Venham!
AVÔ obstinado: Cale-se! Vamos ficar aqui. Não iremos abjurar como vocês! Sucumbiremos, se necessário - por nossa fé. - Com severidade: Você não tem mais nada a nos dizer. Tentou vender a alma de sua filha. Fora daqui! Você não é digno de vê-la.
PAI estremecido, pesaroso e trêmulo: Não sou digno... Vocês têm razão... Não sou digno... despede-se cambaleante.
CENA 3
Surdo troar de canhões ao longe. Faz silêncio na sala. A jovem posta-se novamente na sacada. O avô está a seu lado e afaga-lhe os cabelos com sua branca mão.
AVÔ Menina, não chore. Tinha de ser assim.
MOÇA Você foi duro, avô!
AVÔ Tive de sê-lo. Eles queriam vender sua alma.
MOÇA devaneando: Talvez o pai não o quisesse... O pai foi sempre tão bom para mim. Quando eu ainda era pequena, ele sempre me tomava nos braços e dizia: você é a minha doce e pequena donzela. Acho que ele gostava mais de mim que do mano. E então morreu a mãe. Lembro-me como se fosse hoje. Ela jazia com seu traje negro no caixão sombrio. Três velas mortuárias, altas e brancas, iluminavam a noite. Nós, os filhos, permanecemos sentados toda a noite e choramos. O pai chegou de manhã. Tomou-me nos braços e me beijou. Agora temos de nos unir, disse. Para mim você vale mais do que uma centena de amigos. E ele beijou a morta. - Aquilo foi como um juramento. - Não sei por que essa noite triste me vem hoje à lembrança...
Nesse instante labaredas elevam-se à altura das janelas; irradiam um brilho auriverde. O céu por detrás tem cor de sangue. O avô acomoda-se em sua cadeira.
MOÇA falando da janela: O fogo aumenta. Envolve a torre lá adiante. Quase toda a cidade arde em chamas. As muralhas sobressaem negras diante do céu vermelho. O inimigo inicia o assalto. Vejo suas escuras e faiscantes colunas avançarem. Oh, Deus! Tem piedade de nossa pobre cidade!
AVÔ Que ataquem, os inimigos; Deus está conosco!
O troar dos canhões torna-se mais forte. À janela dançam as fagulhas do incêndio.
AVÔ Fique tranquila, minha filha. Deus está conosco.
Os sinos começam a repicar num longo balanço.
AVÔ estático: Menina, ouça; os sinos. Sinos que anunciam o assalto. Deus está próximo! São vozes divinas! Conclamam à luta!
MOÇA confusa: Os sinos... Vozes divinas... Grita: Senhor Deus! Vozes divinas! Ela caminha muda e pasmada, passa pelo avô e sai. O avô contempla-a imóvel. - O troar torna-se mais forte e parece avançar ganhando volume: um ruído ensurdecedor, bem junto à casa. Fogo e fumaça atingem as janelas. A casa está em chamas. E subitamente tudo é silêncio...
AVÔ falando alto, com uma voz que ressoa: Senhor, fica conosco, pois está anoitecendo e o
dia declinou.
As cortinas se fecham murmurantes sobre o aposento em chamas.
FIM

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