domingo, 30 de junho de 2013

Um cara formidável - Leyla Perrone-Moisés

folha de são paulo
LEYLA PERRONE-MOISÉS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Maurice Nadeau, morto no último dia 16, aos 102 anos, foi uma das pessoas mais notáveis que tive a sorte de conhecer. Nosso contato começou em 1969, quando ele dirigia a editora Denoël e me encomendou um prefácio para a edição francesa de "Nove, Novena", de Osman Lins.
Desde então, em todas as temporadas que passei na França, frequentei a redação de sua revista, "La Quinzaine Littéraire". Ao longo dos anos, publiquei nela numerosos artigos sobre literatura francesa, portuguesa e brasileira.
Em 2001, quando ele fez 90 anos, eu estava em Paris e decidi que já era mais do que tempo de fazer uma entrevista com aquele "monumento" da cultura francesa.
O cartão aqui reproduzido me foi enviado por ele quando recebeu o exemplar do suplemento "Mais!", publicado pela Folha, com a entrevista.
Alain Azambuja/Folhapress
O crítico literário e editor francês Maurice Nadeau, criador da revista 'Quinzaine Littéraire', em foto de 2001
O crítico literário e editor francês Maurice Nadeau, criador da revista 'Quinzaine Littéraire', em foto de 2001
A biografia de Nadeau é belíssima. Filho de um camponês e uma faxineira, foi um "pupilo da nação", como eram chamados aqueles cujos pais tinham morrido na guerra de 1914, e se beneficiou do excelente ensino público de seu país naquele tempo. Ainda muito jovem foi professor e repórter do "Combat", jornal de Camus.
Foi comunista, depois trotskista e resistente durante a Segunda Guerra. Em 1945 publicou a "História do Surrealismo".
Fundou a revista "Les Lettres Nouvelles", que depois se transformou em editora. Em 1960, em plena guerra colonial, foi um dos 120 corajosos que assinaram um manifesto em favor da independência da Argélia.
Estar com Nadeau, que tinha excelente memória, era estar na companhia de uma enciclopédia literária viva, porque conheceu todos os grandes escritores franceses e muitos estrangeiros do século 20.
Como editor, foi o primeiro a publicar textos de alguns que se tornariam célebres, na França e no mundo: Beckett, Henry Miller, Gombrowicz, Barthes, Bataille, Nathalie Sarraute, Perec... a lista é infindável. Logo que seus "achados" eram reconhecidos, passavam a ser publicados por grandes editoras, e Nadeau não lucrava nada.
Em 1966, fundou "La Quinzaine Littéraire", que se tornou modelo de revistas literárias através do mundo e que dura até hoje, sempre à beira da falência, apesar de seus colaboradores, alguns ilustríssimos, nela escreverem gratuitamente.
A última batalha de Nadeau foi justamente para salvar a revista. Um mês antes de morrer, fez um apelo aos colaboradores e assinantes para que se tornassem acionários. Teve amplo retorno.
O homem Nadeau foi realmente "um cara formidável". Alto, forte e sisudo, falava o francês do povão. Sob essa aparência um pouco rude, era uma águia de inteligência, um coração mole e um fino humorista. Era, sobretudo, de uma real modéstia.
Atribuía à sorte o fato de tantos gênios da literatura o haverem procurado e qualificava sua atividade como a de um mero intermediário, um servidor dos escritores.
Suas memórias, publicadas em 1990, se intitulavam "Graças lhes Sejam Rendidas". Desde a juventude, sua paixão pela literatura o tornou avesso aos critérios ideológicos e o fez defensor de textos inovadores e fortes, mesmo que as opiniões pessoais dos escritores fossem diferentes da sua.
Nadeau era aberto para o Brasil, como para o mundo todo. Em 1976, colocou em matéria de capa um artigo meu sobre a "Revista de Antropofagia", e sua última editora publicou Mário de Andrade.
As reuniões na Redação da revista eram comandadas por ele com simplicidade. Nadeau não precisava se impor; os que ali estavam o admiravam. Os jantares de aniversário da "Quinzaine", presididos por ele, também eram memoráveis.
Na entrevista de 2001, ele exprimia sua descrença com relação ao futuro da grande literatura que editou e defendeu. Perguntado se ele era, como tinha dito um dia, "o guardião do templo", respondeu: "Agora eu não diria mais isso. Não guardo nada e não sei se o templo ainda existe". Mas até seu último suspiro, ele batalhou desinteressadamente pela literatura.
LEYLA PERRONE-MOISÉS é professora emérita da FFLCH-USP e autora de vários livros, entre os quais "Altas Literaturas" e "Vira e Mexe, Nacionalismo" (Companhia das Letras).
+ CANAIS

Nenhum comentário:

Postar um comentário