domingo, 7 de abril de 2013

Laranjas de fim de noite

folha de são paulo

ARQUIVO ABERTO
memórias que viram histórias
São Paulo, anos 80
ALEXANDRE BARBOSA DE SOUZAIsso são coisas de muito antes, antes de descobrir que o que eu gostava mesmo era de arte, e não de morte. Sempre gostei de velhos, pessoas, livros, sebos etc. Um dia meu pai me fez a gentileza de explicar que não daria para eu viver da minha perplexidade, que se eu só sonhasse e não acordasse e escrevesse, não adiantaria nada. Mas a verdade é que a vida absolutamente não me interessava.
Escrevi praticamente um poema por dia durante alguns anos antes dos 17. Entreguei todos ao Willy Corrêa de Oliveira, que comentava alguns e anotava e me mostrava outros tantos. Do entusiasmo desse grande músico e mestre das artes por esses poucos primeiros poemas, tirei coragem para escrever mais alguns, que pudessem arrebatar meu amigo e principal leitor desde que comecei a fazer poemas. (Se eu fosse um Pasternak tupiniquim, o Willy seria meu Scriabin do Recife.)
Um dia escrevi: "Falta um dia/ para o fim do mês.// E me lembro de dizer/ a meu pai: sinto uma tristeza/ infinita". Por esse poema, o Willy me deu de presente a edição fac-similar de "The Waste Land", do T.S. Eliot, com os cortes do Pound.
Outro dia estávamos descascando uma laranja de fim de noite e o Willy contou a história de "A Pantera" do Rilke -Rodin pediu a Rilke que fizesse um poema da pantera do Jardin des Plantes de Paris. Por que eu não fazia um poema assim, de uma coisa, e não só da minha cabeça? (Porque tem poema que vem mesmo soprado no ouvido pelo próprio anjo.)
Aí escrevi o poema do pássaro chinês que Willy e sua mulher, Marta, têm na sala: "O pássaro chinês/ Deixou as mãos/ Do artista: encantado,/ Voou por oceanos/ Esquecidos dos grous,/ E, mais saudoso que cansado,// O aventureiro,/ Pousou com espanto,/ Entre o santo e o tinteiro;// Onde agora vigia,/ Seu sábio coração/ De madeira da China.".
Quando voltei de Cuba em 1999, o Willy me pediu que contasse sobre a viagem, o que eu havia escrito. Levei ao Pedro Juan Gutiérrez alguns presentes do Willy, que o conhecera nos anos 1970 em São Paulo, quando Gutiérrez ainda era um poeta pequeno-burguês, segundo os amigos que o haviam recebido por aqui -entre eles, o Willy e o poeta Florivaldo Menezes. Esse pedido motivou uma versão das minhas anotações de diário, que resultariam no livro "Viagem a Cuba", que termina assim: "Há uma pureza que se perde/ Na transcrição das frases.// Uma pureza que está na memória/ Livre dos gestos livres;// Mas não ali quando os repetimos./ Algo entendido para sempre.// Que procuro manter em silêncio/ E retirar só em caso de urgência.".
Em 2003, passei alguns meses em Amsterdã, gastando o dinheiro de quase dez anos de fundo de garantia, amealhados trabalhando na editora 34, e publiquei uma plaquete, "XXX", o meu primeiro livro sem a participação do Willy.
Dez anos depois disso, reuni o conjunto que chamei de 11+1
poemas e levei para o Willy. Alguns dias depois, ele telefonou dizendo que ele tinha feito uma música, que talvez fosse a música mais bonita que já tinha feito, para soprano e piano, a partir de um poema que escrevi sobre uma luminária que comprei num antiquário em Santa Cecília, e que hoje ilumina o quarto do meu filho: "Minha lâmpada maruja,/ Mourisca, de escamas de luz,/ Meu quarto vazio marulha.// Faz pousar no parapeito/ A gaivota obscura;// Minha lâmpada maruja,/ Mourisca, de escamas de luz.// Atrai para o tapete/ A sereia branca.".

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